sexta-feira, maio 26

16-2006: O Terreiro das Baraças


O terreiro das Baraças, no coração da Malhadinha, sempre foi dos lugares mais movimentados da aldeia. O mundo girava ali naquele largo.
Aos domingos, tirando a porta da Igreja na hora da missa e a porta do Salão às horas de baile, era lá que se juntava a povoléia para brincar, confraternizar e também discutir, mas só em pequenos grupos que o regedor andava vigilante.
Era lá que os homens tiravam teimas, no jogo da barra ou da malha.
Era lá que batiam a cavaquinha, no parapeito de uma qualquer janela, sempre acompanhados por uma assistência atenta e entendida, que conjecturava e ia fazendo os seus vaticínios.
Era lá que jogavam a raioula, que a taberna do ti Cavalinho e mais tarde a do ti Fontes eram logo ali ao lado.
Era lá que as raparigas jogavam ao mata e outros jogos da Quaresma e que os rapazes jogavam à sovela ou ao porro. Este tinha de ser um pouco mais afastado não fosse o diabo tecê-las, ao atirarem a pedrada ao alvo (porro), acertar onde menos se esperava.
Também era lá que, em noites de lua cheia, se fazia o baile das bruxas e se reunia a diabólica, antes de desabelhar pelas ruas em grande algazarra e desaparecer pelos campos absorvida pelas sombras que se escondem da lua. Na manhã seguinte constatavam-se as marcas da sua passagem em tudo quanto era "espinhos, espetos, cardos e carapetos".
E isto, podem crer que era verdade, porque testemunhos não faltavam.
O tempo foi passando, o tempo foi mudando, mas o largo foi continuando o mesmo.
Nas longas e quentes noites de verão funcionava ali o tribunal.
Ao serão, as mulheres sentadas num baturel, davam largas à sua veia justiceira, inquirindo, julgando e condenando, sempre à revelia, a vida alheia.
Nesse mesmo baturel sentava-se, aos domingos à tarde, quando a sombra já refrescava, o ti J’quim do Ribeirinho com o seu caixote de laranjas d’imbigo, mais doces que mel de abelha marçanica, colhidas nas laranjeiras lá da horta e vendidas a 6, 10 tostões. Quem aceitasse levar a dúzia era brindado com um cartuchinho de tremoços. "Não pensem já que foi aqui que as grandes multinacionais - tipo mequedonaldes - vieram buscar a ideia dos brindes promocionais. Nessa altura, já a farinha predilecta de muita canalha, trazia um soldadinho de colecção dentro da caixa".
O negócio sempre rendia o esforço de ter passado um verão a regar laranjeiras.
O ti J’quim era homem dado a grandes conversas. Falava, falava, falava. Por vezes perdia-se e perdia, tentando ser demasiado persuasivo na sua venda.
Já todos conheciam as suas histórias, principalmente aquelas em que fazia descrições pormenorizadas da cidade de Lisboa.
Ele, que nunca tinha ido à capital, conhecia-a apenas da cartografia militar, e pouco mais, mas falava dos monumentos, das ruas, dos bairros populares, como se lá tivesse sido carteiro toda a vida.
Não sabia uma letra, mas em contas ninguém lhe passava a peneira.
E memória? Prodigiosa. Qualquer coisa que lhe entrasse no sentido e que nela pusesse fé, era certo que ficava cativa naquela mioleira que, como ele dizia:
- A terra há-de mos comer, mexidos com ovos de pita choca.
Para verem a memória do homem dou-lhes um exemplo.
O correio (cartas e encomendas), era a ti Alfaiata que o ia buscar à Zebreira, fazendo diariamente a viagem de ida e volta a cavalo na sua burranca, sendo depois distribuído à porta da taberna do ti João Bata, que nessa altura tinha o depósito dos despachos dos CTT e também o telefone público. Estes serviços, mantendo os mesmos moldes, passaram, mais tarde, a funcionar na taberna do ti Fontes, mesmo ao pé do Terreiro das Baraças. Nesta altura já a ti Alfaiata tinha passado o lugar ao "homem do correio" que fazia o percurso ao contrário: vinha da Zebreira trazer a correspondência a Toulões e voltava.
A distribuição era feita ali mesmo. Todos os dias, mais ou menos à mesma hora, lá estava um magote de gente pronta para responder à chamada.
O ti J’quim raramente faltava à leitura do correio. Àquela hora arranjava sempre um tempo para fazer uma bola e ir ouvir nomear os destinatários das cartas que chegavam.
É aqui que ele puxa pela memória.
Quando via alguém que fazia vida no campo e passava muito tempo sem vir a casa, cujo nome fora mencionado, tratava logo de avisar:
- Vai lá à Conceição Donija (Dionísio) que tens lá carta! – mencionando sempre o dia em que a dita "fora lida" pela primeira vez, mesmo que já tivesse passado um mês ou dois. E o carimbo dos correios, descontando os dois ou três dias em que a carta andava em circulação, não enganava.
No terreiro das Baraças havia por vezes outras teimas, não que fizessem girar o mundo, mas às vazes faziam chispas.
Era digna de ser presenciada, quando aparecia o ti Zé Pintalgado e se pegava com o ti J’quim, ambos a discutir fosse que assunto fosse, a discussão resultante.
Uma luta de teimosos, cada um a querer dar mostras de maior sabedoria que o outro.
O ti Zé Pintalgado trazia sempre no bolso umas folhas de jornal que guardava religiosamente dobradas e embrulhadas. Exibia-as em algumas ocasiões, já com algumas letras sumidas, para mostrar notícias, aí com 5 ou 10 anos, que dissipavam dúvidas quanto a veracidade de algumas das suas tiradas.
Por vezes já era motivo de chacota e afinava quando o ti J’quim o picava:
- Atão e o Sr. Padre da Mata-Mourisca tamém dá leite, no é? – fazendo alusão a uma notícia sobre distribuição de leite em pó por parte do pároco que era referida numa das folhas do maço que mais parecia um velho pasquim.
Mas ele, sempre resposta pronta na ponta da língua, não se ficava e rematava de seguida:
- Atão tu que sabes tanto, mê paspalhão, responde-me lá a esta: Quantos quilos de serradura tenho de dar a comer o mê burro para cagar duas tábuas de solho em pau de pinho?
Mas, brincadeira à parte, o ti Zé Pintalgado era mesmo dono de grande sapiência.
Citava com frequência os prognósticos proféticos do Bandarra, uma espécie de Nostradamus à portuguesa, para enquadrar uma determinada situação.
- Já o Bandarra dizia…- e deitava p’rali um corgalho de versos, num arcaico que mal se percebia.
Falava da memória da água, e exemplificava o fenómeno com o funil com que o ti Cavalinho trasfegava o vinho, previamente baptizado, do pipo para o garrafão. E a coisa era mesmo verdade, porque o jornal fazia prova.
Sabia fazer contas com "cobrados", conhecia a história de Portugal de fio a pavio, falava das civilizações grega e romana e por aí fora.
Homem já entrado na idade, grande conversador e grande pedagogo, tinha sempre uma regra para ensinar aos mais novos, mas também gostava de lhes pregar umas rasteiras. Não eram raras as vezes em que punha à prova a sabedoria dos cachopos que vinham passar as férias escolares.
- Atão parente, em que ano andas? Sabes em que dinastia D. Pedro III foi rei de Portugal?
Nem esperava pela resposta e avançava logo com o sacramental problema do pombal das cem pombas e do gavião (lembram-se?), atrapalhando o raciocínio ao sortudo a quem tivesse calhado a rifa.
A dada altura é que foram elas.
Numas férias grandes, apareceu por ali um rapaz a cavalo numa montada que não precisava de esporadas nem de puxões de rédeas para se empinar nas patas traseiras e abrir, campo fora, desenfreada. Aquela Kawasaki 125 cross, que parecia um potro ainda por amansar, deixava tudo abismado. Com dois pinchos para lá e dois para cá ia à Granja e voltava.
Aquilo é que era uma novidade das valentes.
Era o filho do Ferreta, vaqueiro na Granja. Alguns ainda se lembravam dele em garoto, quando estudava no seminário. Sempre que cá vinha, ajudava o senhor padre António na missa, mas depois, tendo ido estudar para Coimbra, chegava à Granja de fugida para visitar os pais e nem vinha aos Toulões.
O bom do ti Zé, uma vez que o apanhou a jeito, tratou logo de lhe fazer o teste. O rapaz conseguiu inverter posições e, como grande malabarista da matemática que era, passou ele a questionar. Ao conseguir provar diante dos seus olhos, que 1 era igual a 2 e, depois, que 2+2 era igual a 5, deixou o ti Zé descomposto.
- Este sabe mai qu’ a justiça velha!
Recompondo-se, sacou da cartola o trunfo que guardava sempre que se via enrascado. O problema das laranjas que ainda ninguém lhe tinha resolvido. Nem ele o sabia resolver. Sabia apenas o resultado, mas revelá-lo..., tá quieto.
Ditou o problema sem grandes explicações.
O Zécá só pediu para recapitular:
- Ora vejamos: três guardas, metade das laranjas mais metade de uma sem partir nenhuma a cada um e ficou com zero laranjas.
- Quantas colheu?
Pede-lhe a "BIC cristal escrita normal" que guardava no bolso da véstia e, num papel com que o ti J’quim encartuchava os tremoços, faz meia dúzia de rabiscos, põe o problema em equação e apresenta a solução.
- Veja lá se está certo senhor Zé.
Olhando para o papel, pensa lá para com ele:
- Este gajo sabe tralha basta. Atão no é que atinou logo à primeira.
Rendido à inteligência do rapaz, lança um elogio em tom de desabafo:
- Já vi que sabes mai qu’ o Bandarra.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
baraças; 1] neste caso, o nome é alusivo à alcunha de uma família que habitava o largo(terreiro por não ser calcetado) e que lhe deu o nome. 2] cordeis
burranca; burra nova
corgalho; atado de coisas
desabelhar; retirar-se rapidamente, pôr-se a andar, desaparecer
fazer uma bola; fazer uma pausa no trabalho para fumar um cigarro ou beber água
laranjas d'imbigo; Laranjas de umbigo, laranjas da baía
leitura do correio; anunciar os nomes das pessoas a quem se detinava a correspondência
parente; Tratamento amistoso dado pelos mais velhos aos mais novos
paspalhão; palerma
passar a peneira; enganar, ludibriar
pincho; salto, pulo
povoléia; populaça

quarta-feira, maio 17

15-2006: Água na boca


"Isto é que é lousa!"
Em Toulões, esta expressão, acompanhada de um "humm" de satisfação e de uma lambidela de dedos, qualifica os melões, ou outra fruta da boa, desde que se trate de "cousa lousa", ou seja: coisa fina, apetitosa, saborosa, suculenta.
Para os apreciadores de bom queijo a expressão tem exactamente o mesmo valor. Significa que o produto é realmente de excelente qualidade.
Se alguém te disser - Não queiras que não presta! - aceita porque de certeza que é bom.
Por aqui o queijo sempre foi afamado. A sabedoria da feitura artesanal do queijo foi, e ainda é, empírica e vem de pais para filhos, embora hoje já não haja filhos para serem pastores nem para serem queijeiros.
Tanto nas queijeiras (locais onde se faz queijo) dos grandes coitos, onde o pastor trabalhava à soldada, como em sua casa, em que era o dono do seu rebanho, o trabalho era de uma dureza castigadora. Não sendo um trabalho pesado, implicava, no entanto, muitas horas de dedicação. Não havia domingos nem dias santos, porque, ao fim de semana, o rebanho também tinha de se alimentar e o leite não podia ser conservado.
E se o povo é categórico em dizer que "Vida de pastor e vida de cão são vidas de mandrião" ou "ao pastor e ao seu cão, Deus deu vida de calão", engana-se redondamente.
O rebanho não dá tréguas.
Mudar os bardos com cancelas pesadíssimas, todos os dias ou dia sim dia não, tosquiar, tratar das crias e sobretudo ordenhar.
A durereza desta última tarefa vê-se nos calos formados nos nós dos polegares como consequência da quantidade de ubres que muge duas vezes por dia. Uma ao raiar da aurora e a outra ao entardecer.
Neto e filho de pastores, ao ti Antónho dos Crostos, nasceram-lhe os dentes a andar aderrabo das ovelhas. Lembro-me de o ver, enrolar o cigarro com aquelas pontas dedos impregnados de nicotina, por força dos muitos anos a tirar o tabaco da onça Kentuky que guardava numa pataca de cabedal e a compo-lo na mortalha, dos quais sobressaiam aquelas bugalhas parasitas agarradas aos mata pulgas.
Para ter mesmo boa qualidade, o queijo necessita dos seguintes ingredientes:
- Leite de cabra ou ovelha que se apascente em pastagens macias (nem erva não muito viçosa nem pasto muito seco) dizem os especialistas modernos que confére melhores qualidades organoléticas ao queijo.
- Flor de Cardo de boa qualidade. Recolhida na altura certa e seca durante alguns dias. Põe-se a dose correcta de cardo num almofariz de madeira, junta-se água morna e pisa-se. Deixa-se a mistura macerar durante cerca de meia hora. Côa-se para o leite que já está na celha, junto ao lar, para adquirir a temperatura ideal a fim de que a coalhada adquira a consistência ao ponto.
Substituindo o cardo por um coagulante de origem animal (um pedacinho específico de estômago que é retirado quando se mata um cordeiro de leite) e uma cura rigorosa, teremos o famoso queijo queimoso, muito apreciado por quem gosta do queijo a apeguilhar.
- Muita limpeza nos utensílios, desde a ordenha até à cura (picheiro, cilho, acinchos, francela ou parreirão e local onde o queijo se vai tornar delicia).
- Se os pastores guardam os rebanhos são as sua mulheres que fazem o queijo. Como elemento principal, é necessário ter mão de queijeira (ou roupeira como se diz nalguns lados). Dizem os entendidos que a mão tem que estar fria na hora de calcar a coalhada. Mas eu tenho por mim que o melhor queijo desta região é feito com o coração.
- O sal tem de ser do lavado (não vale sal da salgadeira) e a palha centeia onde o queijo irá estagiar deverá ser mudada de vez em quando.
- Agora é só esperar aí uns quatro mesitos e verão o que é lousa.
Nos dias de hoje a descrição feita anteriormente já raramente acontece desta forma. Os pastores não são tão sacrificados. A maior parte vai dormir a casa todos os dias e aos fins-de-semana distribuem rações aos animais.
O processo de ordenha já é mecanizado, deixando ao pastor moderno tempo para usufruir mais da vida.
Os produtores de queijo, nomeadamente a Coperativa de Produtores de Idanha-a-Nova, têm agora todas as condições de higiéne e controle de qualidade (produtos devida e comprovadamente certificados) que proporcionam toda a confiança ao consumidor no produto que chega ao mercado.
Mas que me perdoem os que teimam em acabar com os produtos regionais de origem artesanal, impondo novas regras.
Eu continuo a gostar mais do queijo da terra, mesmo sabendo que de vez em quando lá há uma caganita que vai parar dentro do picheiro, mas que é retirada imediatamente.
Bem. Agora que o gado já está no rodeio, deixem-me ir descansar um pouco, mas antes quero dar-vos um pequeno conselho:
Não esquecer que o queijo provoca esquecimento.
Moderação!
INTÈRPRETE PARA FORASTEIROS
Acincho; Molde feito com uma tira de lata perfurada e um gancho que serve para regular o diâmetro de acordo com a quantidade de coalhada ou o tamanho pretendido para o queijo. A perfuração serve para fazer a drenagem do soro
Apeguilhar;Ter um sabor muito intenso (mais no queijo picante) que origina um consumo mais moderado. Antigamente fazian-se refeições só de pão e queijo. Sendo o queijo o conduto dizia-se que: "quanto mais apeguilha mais se poupa"
Andar aderrabo; Andar atrás de, perseguir
Calão: preguiçoso, mandrião
Cilho; Recipiente de barro (pequena celha) onde o leite, depois de coado, era colocado, adicionando-lhe o cardo, junto ao lume a uma distância que permita manter o leite a uma temperatura amena e constante (cerca de 30 ºC) enquanto o leito é coalhado.
Francela; Pequena bancada de madeira onde se coloca o acincho e se faz o queijo, com um ligeiro declive para escoamento do soro que corre para dentro de um recipiente.
Parreirão; O mesmo que a francela mas com capacidade para comportar 10, 12 ou até 15 queijos de uma só vez.
Queimoso; Picante
Soldada;Vencimento mensal que era composto por dinheiro e géneros.

quarta-feira, maio 10

14-2006: O pagador de promessas


O Pito-Calçudo dizia ao seu companheiro Zezinho, à saída da escola:
- Se me deixares brincar com o teu carrinho de cana, prometo que te ensino um ninho de Tropa-gato, com passarinhos já vestidos e tudo!
- Olha q’o prometido é devido!
- avisava o Zezinho.
Com alguma desconfiança, emprestou-lhe a cana que encaixava no eixo que unia as duas rodas de madeira. Até tinha um volante feito com a rodela de cortiça que servira de tampão à gateira da porta da casa.
Pito-Calçudo cumpriu a promessa. Foram espreitar à buraca que servira para encastrar o andaime na parede de pedra do palheiro do ti Proposta, onde o casal de Chapins-azuis todos os anos escondia o ninho. Ambos, ansiosos por poderem acariciar a penugem macia dos passarinhos e verem aqueles pedacinhos de vida abrirem o bico a pedir comida, ficaram desacorçoados.
Os passarinhos já tinham abandonado o ninho. A promessa saíra gorada.
- Tu já sabias! Enganaste-me!
- Não, não t’enganei!
Levando o Zezinho, a ver um ninho de Pintassilgo numa maçãzeira ali ao lado, não faltou à palavra e cumpriu a promessa, ganhando a confiança do companheiro de escola.
Para o Pito-Calçudo, palavra de promessa era palavra sagrada e para ser cumprida. Aprendeu-o com o pai que cultivava a honra da palavra desde garoto.
Cresceu e fez-se homem. A fé acompanhou-o sempre e era essa fé que servia de moeda de troca para negociar com a santa da sua devoção - Nossa Senhora das Cabeças.
O Pito-calçudo, já galo capão, prometera à Santa, que se não o deixasse ficar mal nas sortes pegaria no Guião, na primeira procissão que se realizasse em sua honra, depois de passar à inspecção militar e daria a volta ao povo mostrando o caminho a quem seguisse na procissão.
- E assim foi!
Por ocasião das celebrações religiosas multiplicam-se as promessas. Muitos prometem e tem que cumprir. Caso contrário, todos os pecados do mundo desabam sobre a alma do faltoso.
Custasse o que custasse, teria de ser ele a arrematar no leilão à porta da igreja, por dever, esse direito. A promessa valia principalmente por não passar pela desonra do mancebo que, não sendo apurado nas sortes, era considerado um inútil. Conseguir tal façanha, fazia do moço, aos olhos dos outros, um homem emancipado, capaz de, sozinho, fazer face às agruras da vida. Por esta razão o Guião da procissão era o mais disputado entre os valentes, mas nenhum homem se propunha transporta-lo se não tivesse a certeza de o conseguir fazer, sob pena de ser zurrado quando viesse o Entrudo.
Fazer o percurso pelas ruas da povoação, segurando a pulso aquele mastro com uma vela desfraldada, onde jaze, pintado, o Sagrado Coração de Jesus, não é obra para qualquer um. Tentando vencer, para além do peso próprio, as acções do vento, que sempre teima em fazer vacilar o portador como casca de noz em mar revolto.
E como se não bastassem os enfeites no adro da igreja e nas imediações, que atrapalham um pouco, eis que chegou o progresso. A electricidade e o telefone, com todo o emaranhado de fios e cabos que zigzagueiam sobre as nossas cabeças, criaram novas barreiras, obrigando a baixar a guarda para poder passar-lhes por baixo. E não eram raras as vezes em que cheirava a chamusco.
A uma dada altura, veio uma rabanada de vento, desequilibrando o Galo-capão, quando este se preparava para passar por baixo de mais um obstáculo. Para não estchabaçar meia duzia de telhas do beirado do lagar do ti Dominguinhos, deixou ir o Guião contra a parede do quintal do Tónho Maria, do outro lado da rua. Não o aguentando, este escavacou-se na crista do muro, caindo a bandeira para o lado de dentro.
Mas promessa é promessa. Como estas situações mandam sempre desenrascar, enquanto a malta saltou o quintal para recuperar aquele pedaço de tecido que apesar de pintado se mantinha imaculado, ele que não era nenhum atadinho, foi num pronto ali à primeira horta do Ribeirinho, desengatou a vara do caibro da burra de tirar água.
Enquanto o foguetório começava a acelerar, assinalando o regresso da procissão à igreja, compôs a bandeira do Guião na ponta da vara e proceseguiu como se nada tivesse acontecido.
Pito-capão passou na dura prova.
Foi mais uma promessa cumprida e aquele expediente de remediar tão habilmente uma situação embaraçosa, valeu-lhe também a admiração do pai da sua mais que tudo, que já havia apalavrado num dos bailes de partido. A prova veio à hora da ceia, quando este lhe concedeu o sim ao pedido da mão da filha. Nessa noite, foram juntos ao arraial, caminhando lado a lado, oficialmente autorizados.
Fazendo emergir aspectos valorativos, muitas promessas são cumpridas com ofertas valiosas, acompanhadas de juras de amor.
Mas a vida é feita de muitas voltas e volta não volta prega-nos uma partida. Por vezes não há promessa que nos valha.
Galo-capão, já daqueles bem duros de roer, com família constituída, viu um dia um filho ficar sem tino, ao cair de cabeça, quando brincava num galho de uma oliveira.
Prometeu uma vaca à sua santa, depositando nela toda a fé na cura do menino. Com a mulher, enfeitou os cornos à Marrafa, com flores variadas e levou-a a dar uma volta à igreja para mostrar à santa o que estava a prometer. As flores resplandeciam na cabeça do animal, mas delas sobressaía a mais nobre de todas: a rosa de albardeira – (Paeonia-lusitanica-Miller). Uma flor vermelha, com uma corola muito semelhante à da tulipa e com um tufo de estames a imitar um sol, apanhava-se nos montados para ocasiões especiais. Hoje parece estar extinta (pelo menos por aqui) talvez porque o seu simbolismo de fertilidade e abundância, desapareceu com "suão" que irrompeu por esta região trazendo o deserto e a desolação.
A Senhora das Cabeças nunca lhe quis cobrar a promessa. O garoto, fora mesmo despedido dos médicos e dos benzilhões.
Apesar de todas as contrariedades, a sua fé nunca esmoreceu, mantendo acesa a chama da esperança.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
bailes de partido; bailes organizados em casas particulares em que só entravam os convidados
benzilhões; videntes, curandeiros
estchabaçar; partir em cacos
sortes; Inspecção militar
Tropa-gato; Chapim (passarinho)
zurrado; sujeito a zurra, envergonhado por um grupo de pessoas

sábado, maio 6

13-2006: Dia 7 de Maio (À minha Mãe)

Vista da Serra da Morracha
TOULÕES
Retrato da terra-mãe
Deste miradouro verdejante, varanda florida e enfeitada
Refrescada pela água milagrosa desta serra, fonte santificada
Avisto a alva candura das tuas casas caiadas, casebres velhos
Avisto a singela harmonia dos teus telhados, pontos vermelhos
Glóbulos do teu sangue que me corre nas veias
Germe da semente que me deu vida, vida que tu semeias
Em extensas e ondulantes searas em que descanso a vista
Que irão dormir no Vale das Eiras, feitas molhos de preguiça
Avisto o Peso, o Monte Velho, o talefe dos Malhadis
E o cabeço dos Frades, de pé, olhando p’ra ti de mãos nos quadris.
Avisto uma bandeja de prata que é a barragem da Pingona
E que foi afolar do casamento entre o Pradinho e a Archelona
Avisto a estrada nova, que se curva e recurva, contorcendo-se de dor
Tal como uma cobra largando a samarra sob um sol abrasador
Avisto a Fonte de Baixo, a Fonte de Cima, o poço da Malhadinha
Avisto a ribeira da Toula que dizem ser tua madrinha
Avisto o Ribeiro de Malhão, o Ribeiro de Cunha, o Ribeirinho
O Ribeiro do Raposo e outros por onde os melros fazem ninho
Avisto o Vale das Vacas, o Vale de Junco e as Lameiras
Avisto montados, olivais, sinto o cheiro das laranjeiras
Sinto o cheiro do rosmaninho, emproado, a cortejar as abelhas
Oiço o chilrear dos passarinhos, desafiando os chocalhos das ovelhas
À sombra destes pinheiros que se vergam para te beijar a testa
E te limpam o rosto, com vassouros feitos de trovisco ou de giesta
Avisto este bucólico cenário, que a natureza, a custo, ainda mantem
Deste miradouro verdejante, virado p’ro mundo, avisto a minha mãe.