sexta-feira, junho 23

18-2006: Defumemos o São João


Se por um lado o mês de Junho é o mês dos ninhos e da passarada; se é o mês do solstício que nos traz o estio que tempera as searas e as apura para terminarem decepadas sob um sol tórrido que até assa canas à sombra (como dizia jocosamente o velho Eusébio, genuíno alentejano de Alter do Chão, que durante uns anos foi adoptado pelas gentes desta terra, pondo nas palavras um segundo sentido - "até há sacanas à sombra"); ele é também o mês dos santos populares que, um pouco por todo o lado, põem meio mundo em reboliço, a cheirar a sardinha e a rosmaninho durante quinze dias.
Embora Toulões tenha como orago o popular Santo António, no qual o povo inteirinho deposita toda a sua devoção, que se manifestava (agora só de vez em quando) na celebração dos festejos realizados anualmente, em Agosto, é, no entanto, o São João que leva a palma, no que concerne o mobilizar de almas nesta quadra em que os dois santos rivais, Santo António e São Pedro, são timidamente lembrados.
Nas vésperas do São João, ao anoitecer, a cada porta se fazia uma fogueira. Dois ou três dias antes, começava a acumular-se rosmaninho junto ao local onde vão ser acesas as fogueiras e cada um fazia ao sua reserva.
No regresso dos trabalhos do campo havia sempre tempo para um desvio fugaz, do caminho, para ajeitar dois braçados de rosmanos e levá-los até casa. Não se podia começar a juntar com muita antecedência sob pena de quando se lhe fosse deitar o fogo já estivessem secos.
A fogueira quer o rosmaninho verde, para a fumegar intensamente.
Toda a santa gente, novos e velhos, salvava aquele pequeno braseiro fumegante, extravasando alegria pela noite dentro, pelo menos enquanto houver rosmanos para queimar e fazer fumo, que, nessa noite, enevoa toda a aldeia.
O fumo intenso por vezes provocava acidentes. Bastas vezes, havia faísca da grande, quando cabeças, vindas de lados opostos, chocavam em pleno salto.
- Recordo ainda um amigo que foi fazer exame da 4ª com um olho mais roxo que uma flor de rosmano.
A rapaziada procurava encontrar alento para dar continuação à festa e "correr a manilha", saltando, uma a uma, todas a fogueiras por onde passava, procurando impressionar as raparigas, exclamando frases que se repetiam ocasionalmente nesta quadra e patenteavam o estado de espírito de cada um:
"Em louvor do S. João defumemos o coração"
Os mais velhos; digo melhor: as mais velhas, já que os homens eram pouco dados a este incómodo, não sentindo, nem a pujança nem a motivação para saltar, aproveitam para tomar banhos de fumo e, assim, "atabafar" a sarna incomodativa que, na maior parte das vezes, não passava de comichão nervosa. Diz o povo que uns banhos ascéticos de fumo de rosmaninho, rejuvenescem a pele e aliviam a coceira.
"Em louvor do percevelho defumemos o pantelho"
As mulheres, mais supersticiosas, faziam a fogueira mesmo à porta de casa deitando-lhe erva do paraíso, para intensificar o efeito do defumadouro. As portas ficavam escancaradas e o fumo desta erva, com um forte aroma de incenso, misturado com o do rosmaninho, empurrava-se para dentro com um avental, uma manta ou com um pano desfraldado. As casas mais afastadas eram defumadas com uma tocha retirada da fogueira.
Defumar é perfumar. O intenso aroma a lavanda, exalado pelo fumo proveniente da queima, entra pelas casas para purificar o ambiente e expulsar os espíritos que por elas cirandam. No final, põe-se então um pouco de azeite, também ele defumado, no buraco de fechadura para impedir que os espíritos voltem a entrar.
"Em louvor do rosmano defumemos o catano"
Havia também quem aproveitasse, o que a tradição trazia à tona dos dias, para tirar conclusões científicas e acertar contas com o futuro. É que nisto da agricultura é sempre bom saber antecipadamente o que nos reserva o São Pedro.
O ti Sarinéu, sábio nas questões da previsão do tempo, era o senhor boletim meteorológico, segundo consta, muito mais fiável que o tão afamado manda chuva, Dr. Antímio de Azevedo.
Nunca se ouviu dizer a ninguém: "lá esta o Sarinéu a meter água".
Observava o comportamento dos animais, o voo dos pássaros, principalmente das andorinhas, se era alto ou rasteiro, observava o astro e outras coisas mais para saber se chovia nos dias imediatos.
No dia de S. João, tinha sempre a preocupação de ir verificar, à fogueira do adro, para que lado o vento levava o fumo. Com tantas fogueiras que havia na aldeia esta não era escolhida ao acaso. O adro é um largo que se situa na confluência de duas ruas orientadas de tal forma que parecem desenhadas sobre a rosa-dos-ventos com o norte apontado ao polo.
Esta observação, que lhe indicava a orientação do vento, mantinha-se nos cinco dias seguintes (até ao São Pedro), a fim de prognosticar o tempo para o ano inteiro. Durante esse período a orientação que predominasse era a que iria prevalecer para a maior parte do ano.
Assim, sendo a predominância dos lados da Serra da Morracha (Norte) indicava que seria um ano frio e seco. Se viesse dos Malhadis (Sul) teríamos um ano húmido e quente, mas se o vento viesse do lado dos Frades (Oeste) o ano seria, por certo, frio e húmido.
Para o vento que vinha de Leste não havia previsão, mas fazendo fé no adágio de que "de Espanha nem bom vento nem bom casamento" adivinhava-se borrasca da valente, "por supuesto".
A prova provada sentia-se, no inverno, quando a gélida aragem que soprava, oriunda da Sierra de Gata, até arrepiava os gorrões dos caminhos.
Mas voltando às fogueiras.
Como em quase tudo também neste caso existem rivalidades quanto à maior e melhor fogueira da aldeia. Se a cada porta existia uma fogueira também, nalguns casos, os vizinhos se agrupavam, e uniam esforços, para fazer uma fogueira comum. Eram geralmente três os locais onde tradicionalmente se faziam as mais concorridas. O Adro, o Terreiro das Baraças e o largo do Poço da Malhadinha.
A fogueira do Adro era da canalha da escola. Por ser perto da casa da professora, nessa tarde, depois das aulas, iam em bandos, para o campo arrancar rosmanos e lá vinha cada um com seu molhinho, para engrossar o monte que se iria queimar à porta da mestra. Esta razão deixava-a, de certa forma, fora de compita.
O despique era quase sempre entre o Terreiro das Baraças e o Poço da Malhadinha.
Num ano em que um dos rapazes, querendo agradar a noiva, juntou dois ou três amigos, roubaram, emprestada, a carroça ao velho Txintxanau e foram aos Dreitos carregá-la de rosmanos para queimar no largo do Poço da Malhadinha. Nesse ano fez-se lá uma fogueira descomunal que dificilmente alguém conseguiu saltar. As faúlhas indo cair dentro do poço que servia a população deu origem a um dito que se dizia aos garotos e que às vezes os deixava desconsertados.
"Foste tu que deitaste fogo ao poço e ateaste o rabo ao gato!?"
Para rematar, agora digo eu:
"Em louvor da tradição defumemos o São João" e já que vem a propósito defumemos também a nossa selecção!

quarta-feira, junho 14

17-2006: Os frascos

Antes: Seara de centeio no Monte Velho de Cima. Paisagem rara nos dias que correm.
Depois: Esta é a paisagem mais comun que podemos encontrar.
Um montado no Carrascal cheio de mato entre os azinheiros.
- Ó Zé, ó Tó, ó Zétó, ó merda cagalhão - bradava a ti Cascaroa, baralhada com os nomes dos três filhos.
Largando os afazeres em volta da masseira, na azáfama de ter de aprontar o pão para levar ao forno, assomou fugazmente ao postigo da porta de casa para chamar pelo mais novo, assim que sentiu a algazarra da canalha à saída da escola.
O Zetó bem ouvia a mãe, mas fazia-se dissimulado. Naquele instante, a prioridade era ir aliviar águas à rua de trás, juntamente com os amigos. Depois do palheiro do ti Flacisco, numa parte mais inclinada da rua, mijavam todos ao mesmo tempo para uma pocinha, espécie de regadeira em ponto pequeno, e quantos mais fossem melhor, para a fazer transvazar e verem a enchente correr pela rua abaixo, torcendo para que fosse ultrapassada a marca deixada na vez anterior. Só depois, o Zetó, à pressa, ia comer a bodinha que a mãe já lhe tinha preparada.
A boda era uma forma ardil de fazer comer os garotos mais renitentes à comida, pondo-lhe pedacinhos de pão com queijo ou chouriço prontinhos a comer, geralmente acompanhados de uma gemada fortificante, sempre com um pouco de vinho ou cerveja, de preferência preta, porque de pequeno é que se começa a ser homem.
"O vinho abre o peito e a cerveja alarga ss costelados".
A alguns garotos, nem com o Ceregomil que o Ti Felizardo trazia da Espanha, junto com alguns chocolates e "riboçados", alpergatas e talhos de fazenda de pana que contrabandeava por encomenda para ganhar a vida, fazia proveito o que teimosamente ingeriam.
Terminada a pequena merenda, lá ia o Zetó ajudar à horta enquanto os dois irmãos, o Tó, e o Zé, mais velhos, andavam por lá com as ovelhas que, por vezes, também ele guardava.
Mais de meia primavera já tinha passado. Com o mês de Junho chegavam os ninhos e, consequentemente, as romarias aos montados e aos olivais que todos conheciam tão bem como conheciam o caminho entre a casa e a escola.
Era a cisma pelos ninhos de rola. Palmilhava-se termo e mais termo, sempre de olhar virado ao céu como que a procurar ajuda divina, na esperança de encontrar aquele simples emaranhado de pauzinhos que os caracteriza, instavelmente apoiados numa forquilha de ramos ou numa pernada mais grossa. Depois era só subir à árvore, sozinho quando se podia, ou, então, com a ajuda dos companheiros, tendo sempre o cuidado de verificar se a rola estava no ninho não fosse ela rejeitá-lo.
"Ninho rejeitado ovo gorado e nem o cuco o quer dado".
A Granja, o Pradinho o Vale da Ribeira das Corujas, o Vale de Cardas do lado de Alcafozes e o Monte Velho de Baixo e Monte Velho de Cima, o São Macal, o Carrascal do lado de Salvaterra e tantos outros lugares que todos os anos se cobriam grandes searas que lhe serviam de repasto, eram sítios a que a natureza dera condições para as rolas nidificarem.
O Tozé, quase se podia dizer, conhecia todo os azinheiros e sobreiras do montado, como conhecia as casas nas ruas de Toulões.
"Bem! O mesmo não se pode dizer do ti Chicote que uma vez, a fugir à venatória, escondeu a espingarda dentro da toca de um azinheiro perdendo-lhe o sítio até ao dia em que foi abatido, sem dó nem piedade, avolumando o monte de lenha que seria vendido em leilão para pagar o vinho à rapaziada, no dia do arranque do madeiro do Natal. Aquilo é que foi pontaria. Ao fim de vinte e tal anos, no meio de tanto azinheiro escolher logo um com um cano que rebentou com duas correntes de motosserra.
(Já me ia esquecendo de referir que aqui dizemos azinheiro em vez de azinheira e sobreira em vez de sobreiro).
Isto foi apenas um aparte, para dizer que a ninho achado raramente se lhe perdia o sítio, mas acabava-se sempre por referenciar a árvore com uma pedra ao toro, mais a fazer a marcação de posse do que de localização. Os ninhos eram de quem os achava primeiro e a pedra era apenas uma testemunha.

Uma das vezes em que o marido da senhora professora, ficou a tomar conta da escola enquanto ela teve de faltar, conhecendo a predilecção do Tozé por rolas, pediu-lhe que lhe arranjasse um casalinho, de preferência já a comer.
A comer era difícil, porque isso de tirar "borrachos-rolos" do ninho para criar, tem lá os seus quês. Tem de ser antes que voem. É preciso andar ali perto de um mês, duas vezes por dia, a encher-lhes o papo, grão a grão, sempre com o cuidado de não lhes partir o frágil bico, até se tornarem autónomas.
"Rolinha de colher partida passa fome toda a vida"
Quem não tinha trigo arranjava-o no rebusco da espiga ou na moagem do ti Chico Raxenol ou do ti Capinha, ganho a troco de uns recados.
Às vezes, a pretexto de uma visita ao moleiro, lá se metiam sorrateiramente duas "mancheias" ao bolso, tiradas da tulha que alimentava um sem-fim que elevava o trigo para uma tremonha de onde, por trepidação e gravidade, caía para o centro da mó.
Ninguém lhe encontrava a falta e as rolinhas agradeciam.
E dar-lhes de beber? Era um acto de ternura!
Depois de lhes encher o papo, metia-mos água na boca, punham-se a beber nos nossos lábios e ficavam a arrolar de satisfação.
O Tozé, sempre pronto a ajudar fosse quem fosse, acedeu ao pedido. Quando saiu ao recreio da manhã, foi, como habitualmente, com os colegas atrás do palheiro do ti Flacisco dar uma ajuda para aumentar o caudal da enchente rua abaixo e, pela surra, moscou-se, rumando às oliveiras do Pradinho para tirar os rolos que tinha encontrado uns dias antes e que já deviam estar capazes.
Entrando olival adentro, como que guiado pelo instinto de orientação dos pombos-correios, o Tozé vai direitinho à oliveira que tinha então marcado. Lá estava ainda o gorrão, de sentinela, a fazer fé de propriedade ao toro da velha oliveira carrasquenha.
Foi-se aproximando, cuidadosamente, para não atormentar a ninhada. Chegado debaixo da árvore logo se apercebeu que o ninho estava vazio. Rolos nem vê-los. Analisando-o, os vestígios indiciavam o abandono prematuro.
Pela quantidade de excrementos e pela consistência dos mesmos, deviam ter deixado o ninho nessa manhã ou no final da tarde do dia anterior.
Fora obra de gato-montês? Vestígios de sangue não havia. Teria sido a cobra?
Ficou desacorçoado. Tinha de encontrar outro ninho para justificar a falta à escola naquela tarde e arranjar uma atenuante para aliviar o castigo do qual, ele sabia, não se podia livrar.
"Mas que se lixasse. Mais vale um gosto que duas verdiçadas"
O Tozé, na impossibilidade de encontrar outro ninho que servisse para justificar a falta, voltou para casa e foi pedir emprestado, ao Barralito, um casal que ambos tinham tirado duas ou três semanas antes. Até finais do verão ainda ia a tempo de restituir o empréstimo.
No Domingo, já à tardinha, lá foi ele, meio amedrontado, entregar a encomenda ao senhor Zé que o recebeu muito bem e até lhe agradeceu. No entanto não se livrou do segundo ralhete da professora por ter faltado à escola. O primeiro tinha sido logo de manhã à saída da missa, onde tinha ido com a mãe e que lhe valeu um bom castigo.
Regar dois leirões de couves à poça e uma leira de feijões e outra de tomates de caldeiro ao rego.
No dia seguinte, como habitualmente, assim que a professora apareceu ao cimo da rua, foi o passa-a-palavra, pararam as correrias e foi o toca a reunir à porta da escola, bem encostadinhos à parede, alinhados numa fila, dois a dois, esperando pela chegada da senhora.
Abriu-se a porta, entraram todos e, como todas as segundas-feiras, a primeira pergunta foi:
- Quem é que ontem faltou à missa?
Silêncio absoluto.
A professora varre a sala para um lado com o olhar e, no movimento inverso, fixa-se na direcção do Barralito.
- Não vi o menino na igreja! Não foste à missa?
- Nada não!
- Nada não…, não! Nada não minha senhora.
- Nada não nha senhora!
- Explique-me lá porque razão, ontem o menino não foi à missa.
- A minha mãe pediu-me para ir com o gado
- Ainda por cima és mentiroso.
- Eu vi lá a tua mãe e ela disse-me que não sabia de ti.
Baixou a cabeça em sinal de anuimento, sem que a professora pedisse, levantou-se, e dirigiu-se para junto do quadro, local de todas as tormentas.
As vinte reguadas, condenação para o crime de falta à eucaristia, não foram poupadas.
O Tozé sentiu a primeira reguada na mão do Barralito como se lhe tivesse entrado pelo peito, já que ele faltara à missa para o poder ajudar a arranjar o casalinho de rolas.
Sentiu no goto atravessar-se-lhe o embaraço de não poder repor justiça, mas, num impulso de coragem, levantou-se da carteira tropeçando na sacola dos livros, e interpôs-se entre a professora e o seu grande e verdadeiro amigo do peito, o frasco, como se tratavam mutuamente, tal como se tratavam (e ainda tratam) os quintos para o resto da vida, depois de passarem à peluda.
- Essas reguadas são pra mim nha senhora. Por minha causa é que ele não foi à missa!

INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
Arrolar;
1] O mesmo que arrulhar 2] Hábito antigo de arrotar de satisfação depois de uma boa refeição
Cano; pernada oca de uma árvore
Dissimulado; teimoso, fingir que não ouve
Frasco; tratamento fraterno entre amigos
Gorrão;pedra de seixo
Quinto; tratam-se por quintos os rapazes/homens nascidos no mesmo ano e que vão juntos à inspecção e à tropa.
Verdiçadas; Pancadas com verdiceiro (verdasca), verdascada