sexta-feira, setembro 29

25-2006: No rescaldo da festa I I I

Fogo preso no Largo do Poço da Malhadinha (1980).
(comparar com a foto do post anterior que contém o endereço da Arca)
O vento da desertificação, que há anos assola esta região levando para outras paragens os filhos por aqui nascidos e por aqui criados, sabe-se lá com que dificuldades, foi para muitos o vento da mudança. Esse mesmo vento devolveu agora às origens alguns menos resistentes ao sopro de saudade, para aqui passarem o resto dos seus dias, usufruindo de algum bem-estar que conseguiram, subindo a pulso a corda da vida.
São estes "novos" residentes que agora vão dando algum safanão no marasmo, evitando o adormecimento completo da rotina.
Hoje, depois de alguma observação aqui e ali pelo ambiente festivo, verificamos que na organização das festas de aldeia há menos improviso.
As coisas já são tratadas com regra, havendo manifesta preocupação com os requisitos mínimos de salubridade e segurança, com os aspectos legais do evento e, quase se pode dizer, existe um protocolo conduzido por profissionais do espectáculo que, apesar de haver cada vez menos gente nas aldeias, mantêm o negócio em crescendo. As animações já são feitas com recurso aos mesmos equipamentos tecnologicamente sofisticados que nas cidades.
Ele é o conjunto psicadélico para o baile com luzes strob e sons do outro mundo.
Ele é o "cantor" que parece que canta mas não canta porque o playback milagrosamente lhe alivia a forte rouquidão que escondia antes de se iniciar o espectáculo.
Ele é o homem dos sete instrumentos que antigamente, qual bobo, se desunhava para esfarrunchar uma moda qualquer em que hoje, sóbrio, consegue, com um só instrumento, produzir música equivalente a uma orquestra sinfónica.
Ele é tanta coisa.
Enfim!, tudo mudou.
Mesmo o fogo mudou. O fogo preso vem agora com ignição electrónica e comandado à distância, fazendo jus aos magníficos espectáculos da Expo 98, que, em comparação, quase nos levam a crer que tudo não passava de uma fraude.
Diz o ditado que "não há fumo sem fogo". A verdade é que sem fogo também não há festa. Pelo menos não havia, porque este ano os mais velhos ficaram completamente desacorçoados.
Habituados a apreciar os espectáculos pirotécnicos, estranharam a falta de foguetório por não se terem inteirado das leis que vieram restringir o seu lançamento como medida de prevenção para os incêndios florestais.
As leis fazem-se e são para cumprir, mas quantas vezes nos apetece infringi-las de tão patéticas que parecem.
Qualquer foco de incêndio com origem no lançamento de foguetes não é tão perigoso como o querem fazer crer. É verdade que o risco existe, mas com tanta gente por perto, e de sobreaviso, rapidamente se retesam as rédeas à ala impedindo-a de desalvorar a galope.
Bem perigosos, esses sim, eram o balões de mecha que, lançados ao Deus dará, pairando efemeramente no ar, por vezes caiam, ainda incandescentes, em locais aonde não se podia acudir atempadamente.
Agora foguetes?
E se havia descargas!
Elas faziam o regalo dos garotos que palmilhavam aqueles campos, todos relampantes, a apanhar as canas como numa rebatina e por fim, pouco preocupados com o maltrato da jaja nova estreada nesse dia, regressavam pelos caminhos ao rebusco das últimas amoras silvestres que aromatizavam o verão.
Era pelo lançar do fogo, cujo troar ecoava decidido pelos céus das redondezas que, como que um convite, se anunciava a festa às povoações vizinhas.Pelo tempo que durava a descarga media-se a prosperidade das gentes das aldeias que tinham orgulho na sua festa.
Por vezes até havia excessos.
Era festeiro o ti F'cisco N. para quem a fartura era sempre proporcional à sua envergadura, tanto fisica como moral. Aquele homazarrão estava sempre disponível para ajudar fosse quem fosse e era de uma rectidão linear. Com ele tudo tinha de ser como é dado.
Nesse ano encomendou-se uma fortuna em foguetes que excedeu largamente o padrão habitual.
Para o ti F’cisco, grande devoto de Santo António, a despedida do santo no final da procissão tinha de ser digna e ficar na memória de todos.
Logo ao romper da manhã, como de costume, era deitada a alvorada que acordava este mundo e o outro com as estridências daquela salva contínua.
Perdendo a noção a tamanha quantidade de foguetes, ao ouvir um tão prolongado estralejar, pensando trata-se de um descontrolo dos fogueteiros, foi-se a eles como gato ao bofe pedir contas pelo esbanjamento.
Sai de casa à pressa atrapalhando a mulher que, àquela hora, já compunha a colcha de seda na janela fazendo contrastar o vermelho sanguinho com a parede branca acabada de calear, embelezando e enobrecendo aquele lar a fim de receber condignamente a procissão que lhe passaria à porta.
Danado com os homens do fogo, por entre descomposturas e impropérios, ele que até não era de faltas de respeito, no meio do descontrolo sai-se ele com esta blasfémia que deixou toda a gente embasbacada:
- Agora gastandas (gastais) os foguetes todos duma vez e logo, ao recolher da p'cissão, dêtéis (deitais) merda ó santo!?
Mas foi apenas fogo de artificio!
Neste quadro de mudança, a única coisa que se vai mantendo inalterável é a carolice e o voluntarismo dos festeiros que se esforçam em não deixar morrer as tradições da sua terra, de forma a que a festa se vá fazendo ano a ano.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
ala; chama
desacorçoados; desiludidos, tristes
esfarrunchar; tocar um instrumento ou fazer qualquer coisa para a qual não se tem aptidão
homazarrão; homem corpolento, homem com muita força
jaja; roupa de criança
rebatina; apanhar caisas do chão ao desafio
relampantes; alegres
retesam; de retesar - tornar tenso, esticar

10 comentários:

a d´almeida nunes disse...

Decididamente, o meu caro amigo (recente mas já me sinto sintonizado nos temas que está a partilhar connosco) consegue imprimir um estilo e um ritmo àquilo que nos escreve que até se fica com a sensação de que estamos nos locais descritos.
Está visto que destes seus escritos só poderá vir a sair um livro a preceito.
Um grande abraço e obrigado pela nota e parabéns que me deixou no "dispersamente".
António

aavozaida disse...

Pois...
Já lá vai o tempo em que se deitavam foguetes, se apanhavam as canas e se fazia uma cabana com elas...
Um abraço
Zaida

Anónimo disse...

Passei para apreciar esta página agradável, que me atrai pela sua qualidade e desejar bom fim-de-semana. Até breve.

Tozé Franco disse...

Mais um belo texto.
Também aí ja chegou o milegre do Playback e eu a pensar que era só na televisão, onde os profissionais fazem playback e os amadores cantam ao vivo.
Gosto das palavras que usa e com o tempo se vão perdendo.
Um abraço para a Raia.

Xico Rocha disse...

O folclore de um povo deve se manter vivo, é a expressão maior da forma de viver de um povo.
Xico Rocha

Rosmaninho disse...

Ainda bem que passaste pelos meus lugares!

Só assim, fiquei a conhecer este nome Toulões...e as tuas festas...

Gostei do rosmaninho no teu post de 23 de Junho "Defumemos o S. João"

Voltarei, podes ter a certeza!

~*Um beijo*~

Aladdin Sane disse...

Belo texto!

Sabias que "jaja" tem, na Madeira, um significado bem diferente deste? "Jaja" ou "fanfão" são outras designações para... vulva.

MaD disse...

Muito obrigado pela visita que me fez e pelas palavras simpáticas que deixou.
Aqui estou a retribuir e aproveito para lhe dizer que fiquei muito agradado com o que encontrei.
Se os nossos blogs, tão distantes geograficamente, têm algo em comum, e têm, obviamente, há um ponto que não posso deixar de realçar: o amor e dedicação às nossas terras e sua cultura.
Bem haja, meu amigo.
Voltarei sempre.
P.S. Só uma pequena rectificação:
o que procuro retratar no meu blog refere-se essencialmente à região da Serra de Monchique, que, sendo algarvia, tem características muito especiais, com influências quer do Algarve quer do Alentejo com que faz fronteira.
Desculpe por me alongar de mais.
O Parente da Refóias

Moura disse...

Neste blog sinto-me em casa,
encontro comentários do sogro, sogra e do um amigo e colega de trabalho! E temas que se enquadram com a minha maneira de estar na vida. As tradições e festejos populares que precisam de ser preservados.
Abraço

Al Cardoso disse...

Concordo consigo, e ate ja escrevi sobre a proibicao de foguetes no verao.
So quem sempre viveu na cidade (Lisboa) e que nao sabe, que a grande maioria dos incendios se iniciam longe das povoacoes, e portanto nada tem que ver o os foguetes festeiros, normalmente deitados dentro das aldeias.

Fartei-me de rir com a ultima parte do texto.

um abraco serrano.