domingo, março 22

4-2009: A crise da moiteira (1ª parte)

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A crise, essa voraz predadora que de forma cíclica e mais ou menos previsível ataca os desgovernados, iludidos pelo faz de conta proporcionado à moderna sociedade de consumo, por uma economia condicionada pela vontade externa como é o caso da nossa, terá nascido do cruzamento de uma casta especulativa do lucro fácil com uma variedade de ganância sem escrúpulos.
Com a sua voracidade, movida por um insaciável apetite, depois de esganar os mais indefesos e de seguida lhes sorver as vísceras, qual "manteiga em focinho de cão" como disse Jerónimo num eloquente discurso, deita-se aos fortes, não lhes conseguindo, no entanto, abocanhar a brancura imaculada dos colarinhos.
O nosso país, economicamente debilitado, cujas empresas devido à contaminação pela crise, ou aproveitando-se fraudulentamente dela, ficam descapitalizadas de valor financeiro e, por arrastamento, humano, deixa famílias inteiras endividadas à mercê de tudo o que a pobreza possa acarretar.
Para combater o flagelo, o governo, sempre atento, tomou as medidas necessárias e mais eficazes. Sabendo que a chegada da crise deixa uma grande quantidade de portugueses de calças na mão, expeditamente impôs o apertar do cinto e tratou de distribuir cartas com as regras do jogo das paciências, para se entreterem nas filas dos centros de emprego até passar esta "maré de azar".
Depois será só baralhar e dar de novo.

Em tempos remotos a crise era palavra com significado menos abrangente. Se hoje a sua pronúncia nos suscita de imediato má política energética, má política ecoriómico-financeira, caos, falência laboral... tudo chavões inventados para nos manter ocupados a fazer contas à vida enquanto nos dão cabo dela, antigamente todas estas palavras resumiam-se a: "tempo da fome", como lembram os mais velhos.

Aqui pela raia, nomeadamente em Toulões, aldeia encalacrada entre latifúndios, para quem não possuísse terras de onde tirar o sustento para assegurar a sobrevivência da família, a crise era uma constante. Mesmo assim, os que as possuíam, lavradores remediados, em anos de fraco gradar dificilmente conseguiam cumprir com o pagamento das sementes e adubos adquiridos a prestações, recorrendo ao crédito muitas vezes avalizado por fiadores agiotas. À primeira falha não se coibiam de cobrar a dívida com uma parcela de terra de valor várias vezes superior.
Para a população em geral, na sua grande maioria de classe baixa, a falta de oportunidades para conseguir um trabalho com continuidade sempre foram escassas. Este trabalho, sazonal, que mesmo remunerado com um salário mísero não chegava para todos, originava situações de carência extrema a que nem sempre se podia acudir, nem com a caridade da família e da vizinhança. Salvo louváveis excepções, os patrões pouco ou nada se preocupavam com a gente que os servia. Pediam braços para a labuta sem se importarem se para além dos braços havia uma pessoa necessitada.
Era o tempo em que se saía de casa ao primeiro cantar do galo para ir trabalhar longe. Chegados ao local, depois de calcorreadas uma, duas e às vezes mais léguas, sabe-se lá por que lapatcheiros, se a meteorologia destemperasse, voltava-se pelo mesmo caminho com a jorna perdida, às vezes dias a fio.
Não havia dinheiro, não havia consumo.
A economia não estava estruturada tal como hoje a conhecemos e o dia-a-dia era feito na base da auto-suficiênçia.
Na horta estava a fonte da alimentação. Um porco que dava carne para todo o ano, umas galinhas, umas cabras e um burro para quem podia, eram complementos que não estavam ao alcance de todos. Adquiriam-se as faltas com as sobras: cortas-me o cabelo e eu pago-te com meio alqueire de centeio; dás-me um litro de azeite e dou-te uma dúzia de ovos... e vivia-se.

Apesar de todas as amargas vicissitudes passadas ao longo dos anos, com crises sucessivas que não deixam saudades, estes homens e mulheres guardam desses tempos uma memória musealizada que faz parte da história desta terra.

Tal como ainda hoje, a crise era um aguilhão que espicaçava na carne. A necessidade obrigava ao desenrasca. Trabalhava-se ao que houvesse, mesmo se a aplicação do ditado do "sapateiro remendão..." fizesse todo o sentido, tal como aconteceu com o alfaiate da Zebreira, cuja história será objecto do próximo post.

ATÉ LÁ.....

6 comentários:

Mare Liberum disse...

Que belo naco de prosa, amigo! Devorei-o num trago pela semelhança com o que ouvia contar aos meus avós, lavradores remediados, previdentes, que tiveram a sorte de nunca ter visto terra sua nas mãos de agiota "benemérito". A serra onde nasci, Caldeirão, pertence a um outro Algarve, onde se pratica uma agricultura de subsistência e os jornaleiros que lá trabalham, ainda que comam todos os dias, só recebem as horas correspondentes à jorna. E, às vezes, o tempo não permite ganhar os cêntimos para o pão... mas a necessidade aguça o engenho.

Bem-haja!

Um abraço fraterno

MPS disse...

Meu caro Chanesco

Que bela descrição da crise que era o dia-a-dia dos nossos, ainda há bem pouco tempo. E que magnífica definição de crise, "aguilhão que espicaça a carne"!

Em Portugal e em muitos países da Europa que permaneceram rurais até muito tarde, as crises continuavam a ser de subsistência, apesar de o resto da Europa e EUA terem, desde o séc. XIX, crises de superprodução. Para as vítimas não deve fazer muita diferença saber de que lado é que sopra a fome.

Um grande abraço

a d´almeida nunes disse...

Caro Chanesco
Então seja bem aparecido! E eu que já lhe tinha encomendado uma missa de x meses, pois já lhe tinha feito o "funeral" bloguístico!
Ainda bem que foi rebate falso.
A crónica da vida desses tempos que descreveu é conhecida duma grande parte de nós, os mais velhos. Seria bastante pedagógico que a juventude de agora não perdesse de vista o que foi viver nessas condições. E que ponham as barbas de molho, que nunca se sabe!
Sem querer pessimista!
Um grande abraço
António

bettips disse...

Impecável e sentida a tua descrição, do tempo das aldeias esquecidas.
Quisera lembrar-me da miséria "da cidade" e poder descrevê-la, o pé calçado (só um) para poupar os sapatos ou chinelos...
Hoje, a crise é um bater de asas no Japão??? e o consumo confunde "a falta de muitas coisas".
Um abraço amigo para a raia.
(tenho imensas saudades de Monfortinho... e tudo à volta)

Meg disse...

Querido Chanesco,

Como faziam falta estas tuas prosas cheias de testemunhos de vidas e suas circunstâncias.

Quem sabe se não estamos a voltar ao "trabalhava-se ao que houvesse, mesmo se a aplicação do ditado do "sapateiro remendão..." fizesse todo o sentido"!

E cá fico à espera do alfaiate da Zebreira.

Um abraço

eddy disse...

o seu fantástico texto é uma "lição"...

um abraço