Esta estória é um post aqui publicado anteriormente, mas que reescrevi e publico de novo.
A morte do Entrudo
Toulões , desde que me lembro, foi sempre uma terra dada a grandes manifestações entrudescas. A Vaca-galhana, as cacadas, ..., e um episódio de há uns bons anos, quando neste mesmo dia se matava o Entrudo à meia-noite com tiros de caçadeira, sendo enterrado todo esfrangalhado nas cinzas de Quarta-feira.
Como todas as noites, a rapaziada já com sangue na guelra e penugem no buço a pedir escanhoamento, juntava-se na taberna do ti Domingos "Cavalinho" a querer ombrear com os homens maduros, que ali vinham matar o tempo sobrante de um dia de trabalho dado à jorna. A vivência entre gerações calejava o carácter aos mais novos. Uma raioula ou uma cartada ao despique, às vezes com perderes mal-humorados por via duns copos de “arreda queixo”, umas pilérias escarnecedoras bem assentes e outras trocas de experiências eram motivo para lhes modelar o estado de alma.
Nessa noite, animada pelo frenesim dos excessos do Entrudo, com os mais novos ainda e retemperarem-se do desassossego de uma tarde a correr a Vaca-galhana pelas ruas do povo, a galhofa foi espontaneamente interrompida pelo troar atabalhoado de dois tiros de caçadeira. O estrondo, parecendo ter vindo da rua dos palheiros, deu logo azo ao espontâneo desatar do cordel dos motejos, atendendo à previsibilidade do sucedido. Os palpites foram unânimes quanto à autoria dos disparos prematuros.
O "Ataqueiro", calhandreiro por defeito de família, de olho no jogo mas sem tirar o sentido na calhandrice, após bater uma destrunfadela com uma forte punhada em cima da mesa da jogatana, consulta o Cauny de 17 rubis, novinho em folha, que um ourives lhe “meteu no fato” na última feira da Zebreira, invocando a nova moda que arrumou no caixote dos obsoletos os mais que vistos relógios de bolso, mesmo que presos por corrente de ouro, e não consegue conter uma risada esfrangalhada. E para esquentar ainda mais o ambiente na incandescente fornalha da taberna, lança, em voz alta, uma cavaca interrogativa sobre a origem dos tiros:
– Inda no é meia-noite e o ti "General" já matou o Intrudo? Aquilo é que é pressa.
O "Arnecacho", intriguista militante, de instinto intempestivo, hesitante entre cortar a vasa de sota ou de manilha, atiçou a cavaca do adversário de sueca:
– Até parece que no conhecendas o ti "General". Andou o dia todo aí pras ruas, encarantonhado de enfermeiro, a apalpar as velhas que se punham jeito, agora quer despatchar isto porque ainda tem que fazer hoje.
Por sua vez o “Catchorrilhas”, teimando em nunca deixar passar em claro a oportunidade para uma boa ferradela, a falar com o cuspinho na ponta da língua, pronto para humedecer os dois dedos de arrumar o leque de cartas, asseverou com a sua habitual ironia de açular lesmas:
– É como ele costuma dezer. Hoje, com´é Intrudo, inda tem que impolêrar a mulher com as pernas abertas em cima de dois bancos e passar-le por baixo, entes de se irem os dois à cama.
Conhecendo, como todos conhecem, o General, “tchapado pr’a brincadeira” e fogoso animador de rondas ao toque da concertina, a gargalhada foi geral. Em simultâneo com o despoletar desta alegria, uma salva de tiros ecoou por todo o povo que nem descarga de fogo ao recolher da procissão em dia de festa. Diziam os caçadores, movidos pela superstição, que dava sorte alvejar a espingarda para a negridão do céu na noite de Entrudo.
– Mata-se o Diabo e o mau-olhado!
Calada a artilharia, era um caim, caim, caim desarvorado pelas ruas afora. Não se sabia se eram cães a ladrar com medo aos tiros, se era o mafarrico do Entrudo a agonizar, atingido por algum balázio.
O taberneiro, o ti Domingos, homem já entrado nos sessentas, mau grado a carantonha acarrancada posta no aviar dos afreguesados ao fiado, guardava uma jovialidade condizente com a alcunha que carregava. Em novo, vivaço e de pé leve, pelo feito de várias vezes se ter safo à patrulha, no seu encalço por irregularidades menores, valeu-lhe o cognome de "O Cavalinho". A desenvoltura em palmilhar terreno quase a trote, junto ao fácil manejo da espingarda, fazia dele um exímio caçador, prática à qual ganhara vício.
O som dos tiros disparados na rua acometera-o de uma vontade repentina em agarrar a arma pelas fecharias e acariciar-lhe o fuste. Num gesto instintivo levá-la-ia à cara, colocando-se em posição de tiro a alvejar esquivas hipóteses em movimento. Caçar estava-lhe nas veias, mas gastar munições debalde era coisa que lhe provocava inconstância de sentidos. Custava-lhe desperdiçar, assim, sem mais nem menos, dois ou três cartuchos, nem que fossem de sal.
– Atão ti Domingos, vocemecêi no se mete à coviça c’os outros e no dá tamém uns tiros ó Intrudo. – propunha o João Páscoa, sentado junto à mesa das cartas a ver jogar. Sabedor do gosto do “Cavalinho” em dar ao gatilho, acicatava-o pelo flanco da inveja.
– Quem está de fora ratcha lenha, rapaz. Tu no sabes que dois ou três cartuchos que gasto aí na rua, são menos duas ou três peças de caça que mato amanhã.
– Cónho!, o´Domingos. Vá lá, deixa-te lá mas é de merdas e anima aí esta freguesia. – disparava o ti Chico "Coto", também caçador arreigado e tantas vezes companheiros de jornada, mas que por mor da arte venatória e de uma teimosia mútua espantavam amiúde a caça com acaloradas discussões. Apesar de ambos comungarem da mesma opinião quanto ao esbanjar de munições, o ti "Coto" dardejou-o com mais um lancinante ferrete.
Empertigado, a servir atrás do balcão, tanto foi atentado que acabou por ceder.
– Bom, está visto que vós qu’rendas festa. Atão eu já vos amostro como é que se mata o Intrudo.
Entrou no pequeno compartimento em taipa a um canto da taberna, onde dormia, e quando todos esperavam que empunhasse o velho bacamarte que, à cautela, quer fosse período de caça ou não, guardava religiosamente à cabeceira, aparece com uma bomba de morteiro. Uma verdadeira farinheira, inchada, tirada de caldo fervente em panela de ferro. Guardara-a da festa de Santo António, duns foguetes sorrateiramente pifados ao fogueteiro, para ir fazer uma pescaria em qualquer tcharca da Toula ou do Aravil, quando estivesse de maré.
À frente da tasca apenas uma réstia de luz do petromax que iluminava a sala e tenuemente saía pelas portadas, permitia um vislumbre. Sai e, às escuras, apitcha fogo ao rastilho. À laia de pedrada baixa, como as que os pastores atiram para às ovelhas para lhes alterar o rumo das intenções, aventa com a bomba rua acima.
PUUMMM!
A bombarda relampejou com tal intensidade, que num pestanejar evaporou a escuridão. Por um enésimo o clarão alumiou aquela rua que nem sol de Verão no pino do meio-dia e o estrondo, tamanho, ouviu-se sabe Deus aonde lá p’ra casinha do Diabo, trazendo às portas uns pontos de luz de alguns curiosos a quem o extemporâneo rebentamento interrompera o desencabeçar do sono.
Toda aquela malta, que entretanto esvaziara a taberna, se manifestou com vivas ao Entrudo e com uma ruidosa salva de palmas a exaltar o feito do ti Domingos "Cavalinho".
– Esta foi a melhor morte de Intrudo que já vi.- dizia um.
– Pró ti Domingos no há pai. - dizia outro
– Ó Domingos, no há quem te veja o sangue. Bota mas é aí uma rodada à conta da casa, para comemorar. – dispara o ti "Coto" em tom provocatório, sabendo do espírito altivo e de agarrado ao dinheiro do “Cavalinho”, tantas vezes manifestado nas saídas à caça, no tempo em que uma peça morta, vendida a uma clientela tão certa quão disputada, era uma fonte de rendimento para o caçador.
– Cãzoada negra, querendas-me é levar á ruína. Mas vá atão, uma vez no é vez.
Este circunstancial bajular oportunista aborregou-lhe de tal forma o ímpeto, que até os mais cépticos estranharam tanta brandura no resilir.
– Um copito a cada um prá assossega e no dezei que vandas daqui. E é boer e rodar malta, q’amanhã é outro dia.
Imaginariamente a medir a míngua do tinto no pipo, por certo baptizado, sem ver o correspondente retorno na gaveta dos trocados, engolia em seco a irreflectida decisão que acabara de tomar. Mas, como homem de palavra, lá serviu de beber a quem quis. Servindo-se ele também e acompanhou excepcionalmente a clientela que lhe garantia a côdea à hora certa.
Bebeu-se, fizeram-se as despedidas e foi-se tudo embora, acabando ali o velório ao Entrudo.
Na manhã seguinte é que foram elas.
Logo ao romper do dia, brusco, mal a taberna abrira portas, entra o Ferro "Tonto", como sempre o primeiro freguês a vir matar um bicho que o haveria de matar a ele. Para este forasteiro, velho e acabado, sem eira nem beira, sem família, atacado à traição por uma miséria que o deixou entregue à boa vontade de quem lhe saciasse a fome com uma malga de caldo e dos “Caixeiros” que lhe proporcionaram pernoita entre quatro paredes de adobe com um telhado mal corrido, de festa ou não, os dias eram para ele todos iguais. Todos os dias era dia Entrudo. A passagem do tempo era medida pelos copos de vinho sem conta, pagos por quem se regozijava em o ver emborcar meio quartilho de um só trago. De boca aberta para ao ar, tão desdentada como um funil de encher vasilhame, e com o pescoço esticado a fazer de gargalo, vê-lo engolir sem dar ao goto era um espectáculo deplorável, arrepiante aos olhos de qualquer comum, mas aplaudido por alguns pobres de espírito merecedores do maior desprezo.
Logo atrás dele, sem contemplações nem pruridos quanto ao que as vozes do povo pudessem dizer da pouca vergonha que era uma mulher franquear a porta duma taberna, entra a ti Maria “Carceleira", já àquela hora da manhã a atravessar a rua num rogar de pragas indecifrável, a clamar pelo Domingos.
– Ouve lá, quero ver quem é que me paga aquele lindo travalho.
– Aquele lindo travalho? Qual travalho, Maria? – inquiriu ele, ainda meio engazulado, sem saber das favas que tinha para contar.
– Anda cá aderrabo de mim qu’ê já t’amostro onde é qu’ o Intrudo foi onti à noite escoicinhar com as ânsias da morte.
Intrigado, seguiu a mulher a fim de se inteirar do sucedido. Constatando o estrago provocado por aquela farinheira de fogo preso, com as vidraças da janela em estilhaços, poisa o olhar nas fachadas das casas contíguas, apercebendo-se então da abrangência do sopro. Era a janela do "Capito", era a da "Julha Moroa" e a do irmão, era a do Zé Gregório e o postigo da porta da Graça "Beiroa". Do outro lado da rua eram as duas janelas do ti Zé "Coxinho", a da casa e a do açougue com os caixilhos rebentados, a janela e o postigo da porta de casa do "Lebratcho". Enfim, um prejuízo que até Mercali teria dificuldade em escalar.
Neste entrementes a mulher do Zé Antónho, de ouvido à escuta, talvez a querer aproveitar-se da onda de choque, intromete-se alegando:
– Oulha qu’a m’nha janela tamém tem dois vidros estchabaçados. Quero ver quem é qu´mos paga.
Sabendo ele daqueles dois vidros, havia muito tempo partidos, esta desonestidade pareceu uma réplica deste sismo, impedindo-o mesmo de reagir. Já não bastava o resto.
Ia-lhe caindo o coração aos pés. Branco como a cal que emoldurava as janelas da sua desgraça, esconde a cara entre as mãos. Não para encobrir a desfaçatez, essa sacudia-a com hombridade de carácter, mas na procura de uma receita milagrosa, atenuadora da dor de cabeça provocada pelo resultado desta conta com tantas parcelas.
Num pensamento agoniado, como que a querer vomitar o orgulho com que se enfartara na noite anterior, lança um grito uivado a manifestar toda raiva por se ter deixado levar à displicência:
– Fiiiilhos dum graaaaanda coooorno. Como é qu’eu me deixei ir na vossa conversa.
Encostado à ombreira da porta da taberna, sem tomar partido, o Ferro, que nessa noite presenciara a morte do Entrudo, assistia agora ao levantamento dos despojos.
3 comentários:
Chanesco
Coitado do ti Domingos: a que custos aprendeu que só pode brincar quem aprendeu a fazê-lo!
Uma história lindamente contada, a matar-me a saudade que tinha de o ler em texto narrativo (não importa se foi republicação, porque soube bem à mesma).
Beijos
Chanesco , só posso dizer :MARAVILHOSO!!!!ADOREI o texto , entrecotado de termos do nosso subdialecto...Fora de série mesmo ..."Oulhe , no sêí que mai le dezeri a na seri que fequéva aqui o resto do dia a louver-lhe o engenho e a arti .Bim haja por esta belezura
Muntas vesitas e lembranças com um grand'abraço
Prosa da verdadeira, chanesco. Bem hajas tu.
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