quarta-feira, maio 17

15-2006: Água na boca


"Isto é que é lousa!"
Em Toulões, esta expressão, acompanhada de um "humm" de satisfação e de uma lambidela de dedos, qualifica os melões, ou outra fruta da boa, desde que se trate de "cousa lousa", ou seja: coisa fina, apetitosa, saborosa, suculenta.
Para os apreciadores de bom queijo a expressão tem exactamente o mesmo valor. Significa que o produto é realmente de excelente qualidade.
Se alguém te disser - Não queiras que não presta! - aceita porque de certeza que é bom.
Por aqui o queijo sempre foi afamado. A sabedoria da feitura artesanal do queijo foi, e ainda é, empírica e vem de pais para filhos, embora hoje já não haja filhos para serem pastores nem para serem queijeiros.
Tanto nas queijeiras (locais onde se faz queijo) dos grandes coitos, onde o pastor trabalhava à soldada, como em sua casa, em que era o dono do seu rebanho, o trabalho era de uma dureza castigadora. Não sendo um trabalho pesado, implicava, no entanto, muitas horas de dedicação. Não havia domingos nem dias santos, porque, ao fim de semana, o rebanho também tinha de se alimentar e o leite não podia ser conservado.
E se o povo é categórico em dizer que "Vida de pastor e vida de cão são vidas de mandrião" ou "ao pastor e ao seu cão, Deus deu vida de calão", engana-se redondamente.
O rebanho não dá tréguas.
Mudar os bardos com cancelas pesadíssimas, todos os dias ou dia sim dia não, tosquiar, tratar das crias e sobretudo ordenhar.
A durereza desta última tarefa vê-se nos calos formados nos nós dos polegares como consequência da quantidade de ubres que muge duas vezes por dia. Uma ao raiar da aurora e a outra ao entardecer.
Neto e filho de pastores, ao ti Antónho dos Crostos, nasceram-lhe os dentes a andar aderrabo das ovelhas. Lembro-me de o ver, enrolar o cigarro com aquelas pontas dedos impregnados de nicotina, por força dos muitos anos a tirar o tabaco da onça Kentuky que guardava numa pataca de cabedal e a compo-lo na mortalha, dos quais sobressaiam aquelas bugalhas parasitas agarradas aos mata pulgas.
Para ter mesmo boa qualidade, o queijo necessita dos seguintes ingredientes:
- Leite de cabra ou ovelha que se apascente em pastagens macias (nem erva não muito viçosa nem pasto muito seco) dizem os especialistas modernos que confére melhores qualidades organoléticas ao queijo.
- Flor de Cardo de boa qualidade. Recolhida na altura certa e seca durante alguns dias. Põe-se a dose correcta de cardo num almofariz de madeira, junta-se água morna e pisa-se. Deixa-se a mistura macerar durante cerca de meia hora. Côa-se para o leite que já está na celha, junto ao lar, para adquirir a temperatura ideal a fim de que a coalhada adquira a consistência ao ponto.
Substituindo o cardo por um coagulante de origem animal (um pedacinho específico de estômago que é retirado quando se mata um cordeiro de leite) e uma cura rigorosa, teremos o famoso queijo queimoso, muito apreciado por quem gosta do queijo a apeguilhar.
- Muita limpeza nos utensílios, desde a ordenha até à cura (picheiro, cilho, acinchos, francela ou parreirão e local onde o queijo se vai tornar delicia).
- Se os pastores guardam os rebanhos são as sua mulheres que fazem o queijo. Como elemento principal, é necessário ter mão de queijeira (ou roupeira como se diz nalguns lados). Dizem os entendidos que a mão tem que estar fria na hora de calcar a coalhada. Mas eu tenho por mim que o melhor queijo desta região é feito com o coração.
- O sal tem de ser do lavado (não vale sal da salgadeira) e a palha centeia onde o queijo irá estagiar deverá ser mudada de vez em quando.
- Agora é só esperar aí uns quatro mesitos e verão o que é lousa.
Nos dias de hoje a descrição feita anteriormente já raramente acontece desta forma. Os pastores não são tão sacrificados. A maior parte vai dormir a casa todos os dias e aos fins-de-semana distribuem rações aos animais.
O processo de ordenha já é mecanizado, deixando ao pastor moderno tempo para usufruir mais da vida.
Os produtores de queijo, nomeadamente a Coperativa de Produtores de Idanha-a-Nova, têm agora todas as condições de higiéne e controle de qualidade (produtos devida e comprovadamente certificados) que proporcionam toda a confiança ao consumidor no produto que chega ao mercado.
Mas que me perdoem os que teimam em acabar com os produtos regionais de origem artesanal, impondo novas regras.
Eu continuo a gostar mais do queijo da terra, mesmo sabendo que de vez em quando lá há uma caganita que vai parar dentro do picheiro, mas que é retirada imediatamente.
Bem. Agora que o gado já está no rodeio, deixem-me ir descansar um pouco, mas antes quero dar-vos um pequeno conselho:
Não esquecer que o queijo provoca esquecimento.
Moderação!
INTÈRPRETE PARA FORASTEIROS
Acincho; Molde feito com uma tira de lata perfurada e um gancho que serve para regular o diâmetro de acordo com a quantidade de coalhada ou o tamanho pretendido para o queijo. A perfuração serve para fazer a drenagem do soro
Apeguilhar;Ter um sabor muito intenso (mais no queijo picante) que origina um consumo mais moderado. Antigamente fazian-se refeições só de pão e queijo. Sendo o queijo o conduto dizia-se que: "quanto mais apeguilha mais se poupa"
Andar aderrabo; Andar atrás de, perseguir
Calão: preguiçoso, mandrião
Cilho; Recipiente de barro (pequena celha) onde o leite, depois de coado, era colocado, adicionando-lhe o cardo, junto ao lume a uma distância que permita manter o leite a uma temperatura amena e constante (cerca de 30 ºC) enquanto o leito é coalhado.
Francela; Pequena bancada de madeira onde se coloca o acincho e se faz o queijo, com um ligeiro declive para escoamento do soro que corre para dentro de um recipiente.
Parreirão; O mesmo que a francela mas com capacidade para comportar 10, 12 ou até 15 queijos de uma só vez.
Queimoso; Picante
Soldada;Vencimento mensal que era composto por dinheiro e géneros.

5 comentários:

Al Cardoso disse...

Com algumas poucas modificacoes, parecia que o amigo se referia ao queijo "Serra da Estrela" produzido principalmente na encosta norte da "Serra" e no vale do alto Mondego, em que se encontra a minha terra.
As semelhancas de nomes e de habitos, tem que ver decerto com a convivencia dos pastores da "Serra" com as gentes da Idanha por alturas da "transumancia"

Um abraco da Beira Alta.

Ps: "Serra" para nos e a da "Estrela"

Neoarqueo disse...

Bom queijo por aí se deve comer...e que bem me saberia...

Anónimo disse...

Esqueceste-te de falar do Sargento e do Nero que patrulhavam e montavam guarda ao rebanho com aquelas coleiras de pregos para fazer cócegas aos lobos, no céu da boca.

Anónimo disse...

JMC? Não vejo quem sejas mas vejo que também conhecias o Ti Antónho dos Cróstos.
Quanto aos cães lembro-me perfeitamente deles embora o Nero penso que fosse Neru, mas não interessa o que sei é que era ruim como as cobras. Lembro-me que uma vez à porta da igreja, num dia de vacina em que se ali a cãzoada toda para levar com a seringa, o Nero (ou Neru?) limpou o sarampo au chorro do ti Barril.

ricardo disse...

Saudações!
Mais outro post digno de referência!!!
Mas, deixa que te diga...os pastores continuam a "sacrificados", a ordenha apesar de mecanizada não é facil...os rebanhos são grandes (chegam a ser mais de 500 cabeças de gado), a ração constitui um suplemento alimentar diário...altamente discutivel...
O aspecto mais importante que te faltou referir é que a raça merino da beira-baixa (a raça natural da região) foi preterida por raças estrangeiras (principalmente francesa devido à sua maior produção leiteira)...
Quanta à higiene, apesar de a bela caganita potenciar o leite com a flora microbiana fundamental à cura do queijo, existem agentes patogénicos prejudiciais a todos como aqueles que comem os ditos queijos...é claro que estou a falar da febre de malta (brucelose), febre tifoide, listeriose...
É neste aspecto que a Cooperativa de Produres de Queijo da Beira-Baixa/Idanha-a-Nova tem um papel na dignificação e divulgação deste produto regional, que é o Queijo.

:D

Bem-haja pelo post!