quinta-feira, agosto 31

23-2006: No rescaldo da festa

Terminadas as férias estou de volta. Quero pedir desculpa aos leitores, que amavelmente se dão ao trabalho de ir fazendo uma visita de vez em quando, por este interregno mais longo que o previsto, mas como nem sempre tudo corre como desejamos, em que os imponderáveis obrigam a escolhas...
Enfim, adiante!
Do rescaldo da festa sobraram algumas histórias, já um pouco empoeiradas, relembradas em joviais conversas de amigos ao balcão do bufete, ensurdecidas pelo exagero dos decibéis que, por compressão, saem espavoridos do sistema de som que anima o arraial.
Histórias que enchiam um verão. Histórias de quando a "canalhada" ia nadar no Salto da Cabra, onde a Toula se engasgava nos dias de enchente, ou noutras charcas de água mais "remansada". Em simultâneo com uns banhos refrescantes apanhavam-se umas peixadas, mesmo à mão, nas "talocas" submersas das bordas da ribeira. De vez em quando um o outro peixe vinha acompanhado de um susto, mas que importava. Apesar da repugnância que as cobras de água provocavam nalguns mais assustadiços, todos sabíamos que eram inofensivas.
Muitas vezes, espremendo os pedadais da bicicleta até à exaustão, ia-se para o Aravil ou chegava-se à ribeira da Taipa ou até ao Charco Redondo, na ribeira espanhola (Erges), a montante de Salvaterra, a corta mato, passando sulcos de restolho, como calhava.
Ali é que era pescar.
Levava-se a cabacinha do sal, o capa grilos, sempre a rasgar o fundo ao bolso, que, para além de servir para tudo o que servia o canivete do Mc Gyver, servia também para estripar o peixe. Faziam-se umas brasas num sítio desimpedido, não fosse o fogo alastrar ao mato, assava-se o peixe e marchava tudo. Sem pão nem nada!
No entanto, estes locais eram muito distantes do povo e às vezes não havia tempo para andar por lá,
Quando se queria ir aos bailaricos, para não incomodar o sentido olfativo das cachopas, depressa se chegava à nora do ti Dominguinhos a tomar um banho higiénico. Sempre se lhes amordaçava o sentido da crítica. Para mais que, naquela altura, já os Procol Harum, com a canção "A whiter shade of pale" punham Portugal ao rubro de tanto atrito, originando a criação de cada vez mais famílias.
A nora era um poço enorme nos arrabaldes do povo, logo ali ao fundo do Ribeiro do Raposo, já quase a beber na Fonte do Corcho.
Nunca soube porque lhe chamavam assim. Não havia alcatruzes, nem engenho, nem vestígios do dito. A rega fazia-se com um motor Pachancho que veio substituir o velhinho Perkins, pesado c’ma um burro, sempre em cima da carreta que mais parecia uma cadeira de baloiço. Quando se punha a zurrar, vomitava umas três polegadas de água que regavam uma lameira enquanto o diabo esfrega um olho.
Mas os banhos na nora eram para os experimentados e mais afoitos. Por duas razões: Primeiro porque só lá tomava banho quem não se atormentasse naquela avultada massa de água e quem fosse capaz de sair de lá, escalando os três metros de forro em pedra de xisto. Depois porque era preciso estar sempre de sentido afinado não fosse o dono aparecer de repente e "encorrer" tudo à pedrada, ou confiscar a roupa, como acontecera uma vez ao Luís Patacoxa, acusado de derrubar as pedras das guardas lá para dentro.
Se quis a roupa de volta, teve de amargar uma tarde inteira a regar um leirão de milho para não ficar sob a alçada do regedor, "encarrapato", à espera da patrulha que viria de Alcafozes.
Bom, mas na nora nadavam outras histórias.
Eram vésperas da festa de Santo António, numa altura em que, esta, ainda se fazia nos primeiros dias de Setembro, marcando o fim de um ciclo anual de trabalho árduo, que se reiniciava sempre no São Miguel, que já batia à porta.
O Verão estava quase de "cambecas". O sufoco ainda aturdia as últimas melancias, entre outras superfícies descabeladas, e fazia arcar as galinhas, assedentadas, com língua de palmo.
Já havia um bom "catcho" que o sol tinha passado o pino do meio dia, mas as quatro ou cinco badanas do Velho Gato ainda rodeavam à sombra de uma velha bebereira estival, debruçada sobre o Raposo, como que a querer salva-lo e atingir a outra margem.
Do outro lado, o Ti Gato, nos setenta já passados, fazia jus ao nome que lhe calhou em sorte e o celebrizou, por uma vez, com uma coragem e agilidade de felino, ter tirado um ninho de águia no "cruito" dum "calípio" com mais de vinte metros, para os lados do Carriçal.
Conservando ainda parte dessa agilidade, "engarramiçava-se", freixo acima, para "esnocar" umas pernadas ramalhudas com folhas de um verde cheio de viço, que iam complementar o pasto, torrado pelo estio. Os animais é que agradeciam aquela verdura que lhes amaciava o leite e retesava o "amojo".
Tratado o vivo, o velhote sentindo "caraiva" junto à nora, foi-se até lá na busca de um pouco de companhia.
- Maltesaria… Deus nos dê boas tardes! – deu ele a salvação "como manda a hóstia".
Abeirou-se do poço e especou-se junto às guardas, encostado ao bordão, a espreitar para dentro, como que a fazer um levantamento a olho do local.
A rapaziada, "encourinha" de todo, estava pouco incomodada com a sua presença. Sentados nas guardas a secar o coiro e apanhar sol como os lagartos nos primeiros raios de Fevereiro, fumavam uma cigarrada ou então catavam o melro.
Só o Taranta estava dentro do poço à unha com a melena encarapinhada, mais estanque que pena de pato, a tentar lava-la com o perfumado champô Heno de Právia que trouxera duas semanas antes da feira espanhola.
Atão ti Txico, no se quer "meter à coviça" connosco? - disse ele ao ver o velhote assomar-se.
E meteu-se. Despiu-se e galgou as guardas. Empinou-se no descanso, uma pedra saliente do forro do poço que servia para sujeitar mangueira do Pachancho e mantê-la afastada do bordo, que a malta utilizava como de prancha de saltos.
Respira fundo, espreguiça-se como que acabando de largar a enxerga e, relembrando o tempo em que ele para ali vinha amiúde, lança um solene "Ora atão vamo lá ver!"
O homem, de aparência já mirrada, com o corpo a evidenciar os sinais do desgaste provocado por uma vida inteira de trabalho, lança-se desajeitadamente à água, que estava um nível abaixo aí uns dois metros bem medidos.
O corpo desapareceu, recoberto por um reflexo de esmeralda. Dois gorgolões vieram ao cimo trazendo alguns limos soltos.
Ninguém conhecia os dotes de nadador do homem.
O lapso de tempo entre o salto e o ressurgimento do velhote à superfície provocaram nos rapazes uma inesperada angústia.
Fez-se um silêncio espectante, quase a lembrar célebre imagem de Artur Portela, a descrever o mergulho de António Quadros, num dos lagos da Praça do Rossio, que deixou ansiosa uma enorme assistência.
O ti Xico lá emergiu. Ofegante, deu três ou quatro braçadas para alcançar o banco do poço, e, tal como no episódio do Portela, teve direito a uma salva de palmas e tudo.
Porra ti Txico! Pensávamos que queria lá ficar no fundo, a fazer companhia ó João do Reis! – disse aliviado o Batateiro lá de cima .
Ôi parente, também ajudei a tirá-lo! Quando ele cá ficou, ainda eu nadava c’ma uma rã! - referiu com um sentimento nostálgico
Atão veio tomar um banho para amanhã ir lavadinho à festa, não?
Bom, poi! Hoje lavo aqui o corpo e amanhã lavo a alma na pia da água benta.
Tame lá. Lave-se lá com isto! - disse-lhe o Taranta estendendo-lhe o frasco do champô.
Ele, que não conhecia outro sabão a não ser o de soda que vendia o Peixoto, experimentou com agrado a novidade. Mais uma lavadela, mais uma cacholada para enxaguar e depois é que foram elas.
Para sair da nora, a agilidade necessária não era a mesma que para subir a um freixozito. A custo, lá se "embarrou" pela parede, amparado por dois rapazes, saindo incólume da aventura.
Pega na camisa que pendurara no bordão e vestiu-a, mesmo sem se limpar. Quando se preparava para a abotoar, num inspirar profundo, manifestando conforto e bem-estar, solta, triunfante, um desabafo de alívio:
À corpo do pecado que já há mai dum ano que no vias água!
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
Amojo; ubre
Calípio; eucalipto
Cambecas; a cair, a acabar
Canalhada; criançada
Caraiva; grupo de compania, brincadeira
Catcho; naco, bocado
Como manda a hóstia; como pertence, como é hábito
Cruito; ponto mais alto, cocuruto
Embarrou; de embarrar - escalar
Encarrapato; nu
Encorrer; escorraçar
Encourinha; nua, em pelo
Engarramiçava-se; de engarramiçar-se - pendurar-se
Esnocar; partir
Meter-se à coviça; imitar, agir por inveja
Remansada; calma
Talocas; buracos, tocas

3 comentários:

Al Cardoso disse...

Adorei todo o conto, ate me fez lembrar os tempos em aprendi a nadar tembem em coiro no rio Mondego.
Mas foi a ultima parte que me fez, rir a bandeiras despregadas, menos mal que estava sozinho senao "inda iam dizer que tava tolo"

Um abraco serrano.

Tozé Franco disse...

Obrigado pela visita e aproveito para dizer que também gostei mujito do que aqui li.
Vou voltar.

Anónimo disse...

Estas festas tem realmente toda a tradicao do nosso portugal. Beijocas aí pra raia ;***