quarta-feira, junho 29

MEMÓRIAS CURTAS 3 - Circo eleitoral (parte 2/2)

Arraial da Granja (1980)


(Dando continuação ao Circo Eleitoral parte 1/2, mais um desabafo que oura coisa, talvez já temporalmente fora de contexto, deixo aqui a parte 2/2)

CIRCO ELEITORAL (parte 2)


Em 1975, ao fim de um ano de democracia, uma baforada de ar novo nas aldeias do interior onde, até então, o ar respirável chegava quase por favor, como dizia Torga do seu Reino Maravilhoso, as primeiras eleições livres foram uma novidade aceite com alguma indiferença. O obscurantismo, inibidor da instrução e da liberdade, nunca tinha dado azo a comparações.
Eleições? Votar, servia para quê?
A pouca informação e a falta de educação política, trazidas teimosamente pela arreata até Toulões, aliadas ao facto de poucos saberem ler e escrever, levava a que o boletim de voto fosse, sobretudo para os que mais anos amargaram, um verdadeiro quebra-cabeças. Distinguir, no papel, o partido no qual votar, seguindo a indicação orientada pela opinião de um vizinho ou familiar, só pelo distintivo: punho fechado, foice e martelo, setas para o céu, etc., uma vez que a letras das siglas não passavam de hieróglifos tão complexos de decifrar como os escritos deixados pela “diabólca”, gatafunhados no gorrão de sentinela à água da Fonte da Serra. E segurar firmemente uma caneta para cruzar dois riscos dentro do quadradinho escolhido, era bem mais difícil que pegar numa sachola para abrir uma regadeira num leirão de milho.
Nas eleições seguintes, em 1976, o povo foi chamado pela segunda vez a expressar-se livremente através do voto, para escolha dos mais altos signatários da Nação. Este ano de maturação em democracia trouxe mudanças significativas ao quotidiano de Toulões.
A reforma agrária ramificara até ao concelho de Idanha. Impulsionada pelo ideal revolucionário de “a terra a quem a trabalha”, surgida no Alentejo a pretexto de dar cultivo a terras onde só medravam silvas e carapetos, culminou, sob o mesmo pretexto, na ocupação de algumas propriedades do concelho. A Granja do “Marroques”, 1600 ha de terra a perder de vista, ao dar origem à Cooperativa da Granja de S. Pedro, saciando apetites oportunistas, foi uma delas. Pertencente geograficamente ao termo de Alcafozes, era, no entanto, de gente de Toulões a grande força do trabalho que fazia bulir a Granja.
Com a constituição da Cooperativa após as longas reuniões da Queijeira, alguns toulonenses saídos não alinhados com as propostas dos “cabecilhas”, apesar das vantagens em termos sociais para os trabalhadores (descontos para a “caixa”, baixa médica, férias pagas), abdicaram das regalias proporcionadas pela cooperativa e preferiram fazer-se à vida por outras paragens.
Em busca de melhores salários, aproveitaram a estratégia engendrada pelos “ricos”, proprietários e rendeiros de coutos das imediações, um subtil esquema de contra-força, para impedir o alastrar de veleidades políticas inconformes com os seus interesses. Temendo a ocupação selvagem da sua terra, aliciar a escassa mão-de-obra disponível, dado o êxodo migratório verificado uns anos antes e granjear a fidelidade de alguns jornaleiros, era uma forma de garantir a defesa da propriedade.
Os que ficaram, alguns menos capacitados e com dificuldades em conseguir trabalho fora dali, (a cooperativa facultava emprego social) arrolados por um grupo bem definido ideologicamente, ganharam simpatia pela doutrina esquerdista ao ponto de um ou outro ser ter tornado interventivo.
Entre os que saíram e os que ficaram, com pontos de vista diferentes, as opiniões políticas divergentes eram por vezes exacerbadas ao balcão da taberna, com desentendimentos resolvidos de forma tão violenta como caricata.
Com as eleições que se avizinhavam, e a contrastar com a primeira campanha eleitoral, passada ao largo como raposa a rondar vinha vindimada, a campanha passou desta vez com ares de pregação a tentar fazer valer a máxima “um voto é um voto, por um se ganha, por um se perde”.
Ainda o acesso que trazia os visitantes a Toulões, os levava de volta pelo mesmo caminho, as caravanas chegavam aqui com os mesmos apetrechos chamativos que a tropa-fandanga dos saltimbancos.
Era o circo eleitoral. Davam meia volta pelo povo, abrandavam no adro, a fazer mais lavarinto que a canzoada no dia de vacina, indo, invariavelmente, montar arraiais no “Salão” para completar o espectáculo.
Assim aconteceu com o CDS a abrir as hostes. À altura conduzido pela batuta de Freitas do Amaral, prometia bater o pé ao PS e ao PPD, já hegemonicamente instalados, e, sobretudo, desancar no PCP. Chegou aqui com a cavalaria a galope, tendo-se apeado à porta do Salão para o esclarecimento da praxe.
Encostado ao balcão do bufete, com ligação para o interior do salão onde decorria o “comício”, “B.”, ainda com a farda com que limpou a cama ao vivo, cheia de esterco, pouco se importou com o fato domingueiro de quem dava ouvidos à reacção. Nunca gostou e impostrices. Para entrar na taberna e beber um copo, haveria necessidade de mudar de roupa? Para mais, vistas as circunstâncias, sempre era uma oportunidade para dar um sinal de hostilidade para com o CDS, manifestamente contra as cooperativas.
O palestrante, bom orador, propagandista quanto baste, tentava umas incursões pelo sentimento empedernido do povo.
“B.”, de pé atrás com as intenções do orador, filosofa para os que o rodeiam:
“Há que desconfier mas é dos bem falantes. São eles que nos enfiam a garruça”.
E já pingado, continuava a desfolhar uma réstia de impropérios contra o CDS(ML), figurativo usado por um elemento do PC de Castelo Branco, visita assídua da Cooperativa e ao qual achava graça..
“ML? Marxista e Leninista, o CDS?” - admirava-se com a tirada o ti Pintalgado, que sabia mais que a justiça velha e para quem uma enciclopédia não era unicamente o ciclomotor a pedais com que designava as “mobilettes” trazidas pelos “franceses”.
“Marxista e Leninista, não. Mê e Lê é Monopolista e Latifundiário.” - E lança um grito de guerra: – "Viva o PCP!"
“M.Z.”, por defeito com postura cronicamente do contra, instruído pelo patrão e também por um copo de três a mais para ser um aguerrido elemento anti esquerda, pegou no argumento de “B” para armar algazarra. Antigos cúmplices nas lides do contrabando, andavam agora desavindos por causa de políticas divisionistas. Acendeu-se a discussão, com mutuas promessas de morte pelo meio, que só amainou mercê da forte intervenção da assistência.
O que veio depois dá que contar.
Na manhã seguinte, por obra e graça de uma inspiração nocturna, surgiram escritas na parede caleada da casa do Beato, “uma casa sem dono”, umas enormes e esborratadas letras num esmaltado azul-marinho.
“PCP”.
Talvez devesse ser vermelho, mas era certamente a cor que estava mesmo ali á mão de semear. Pela rigidez gestual com que pareciam ter sido desenhadas, com a tinta escorrida e a esbeiçar sobre os caixilhos e numa vidraça da janela, adivinhava-se no autor deste garrafal despropósito mais anos de ligação ao analfabetismo que à ideologia graficamente explanada sobre parede alheia.
Foi uma intriga que ralou as mentes passantes logo pela manhã a caminho da missa. Por desconhecimento do alfabeto, poucos sabiam interpretar o significado.
Descodificado o enigma, nas cogitações do povo só podia ser alguém ligado à cooperativa da Granja, único sitio das redondezas onde o partido tinha ramo verde para pisar e, mesmo assim, consta que passado algum tempo lhe era refreado o impeto. O medo do papão de terrenos trazia o povo retesado.
A notícia do sucedido trouxe à rua a visita de uma romaria de curiosos.
Admiração geral. Falatório.
Mas quem teria sido o alma-do-diabo, o sem careio, que pôs uma bostada destas?
“M.Z.”, inteirado do sucedido, cegou ao encarar com aquela provocação.
Presumindo ser “B” o autor da façanha, e etilicamente já composto, foi a casa buscar a caçadeira e montou-lhe a guarda à porta. Possuído de raiva desatou um chorrilho de injúrias e impropérios.
O aparato montado deixou a vizinhança de plantão dentro de casa a vigiar pelas frestas. Não vendo vivalma acercou-se da entrada do palheiro ao lado e vociferou:
"Abriu a caça ao coelho." – e dispara um tiro para o ar.
O estrondo provocado pelo estoiro da pólvora despoletou dentro do palheiro um alvoroço animalesco. A porta, entraberta, rangeu ligeiramente .
"Estás aí drento, mê comunista de merda? Aparece que te hei-de arrebentar c’a fessura e c’as intranhas."
Assomou-se para o interior escuro do palheiro, empurrou a porta e, de espingarda em riste, entrou de rompante. Conforme entrou assim foi posto na rua, caindo de borco na soleira, impulsionado por uma parelha de coices à queima-roupa. Prostrado, gemia com uma mão no baço e outra nas costelas.
Um “matcho” anónimo e politicamente analfabeto acabara de lhe dar lição de democracia.

6 comentários:

Idanhense sonhadora disse...

Amigo Chanesco , muito interessante este seu relato sobre a "reforma Agrária "no nosso concelho . É um tema que está por estudar até porque a distância---pelo menos a mim ----ainda não me dá a imparcialidade necessária para tal fazer . Soube de terras ocupadas ,como ,salvo erro , os Lentescais , e do marquês da Graciosa a ir para outras terras ....Depois ,voltou . À época não dei muita atenção aos relatos de meu pai que conhecia todo o concelho porque tinha uma pequena empresa de "camionetas de carga" e , fiz muito mal ...Mas andava envolvida nas lutas pelo sindicato dos Profs.....Coisas da juventude e que mostram que já era sonhadora ....Ultimamente, verifiquei que a norte a única região onde chegou a ref.,agrária ,foi ao nosso concelho ; bom seria que os relatos fossem recolhidos , para uma análise posterior.
Bem-haja pelos conhecimentos que me trouxe
Abraço
Quina

Fátima Pereira Stocker disse...

Caro Chanesco


Ultimamente não paro de me rir consigo. Isto é que foi encerrar com chave d'ouro!

Os idos de 75 foram complicados, mormente em sítios de reforma agrária. Havia muita pressa, muita ingenuidade e também muita ignorância, oportunismo e ladroagem. Tal como a Quina, não sou capaz, ainda, de fazer o balanço, embora me sinta distanciada do processo porque o conceito de reforma agrária não chegou a Trás-os-Montes. Ou talvez tenha chegado, de modo enviesado, nos tempos do cavaquismo, sob a forma de reforma dos agrários. Ou morte dos agrários. Ou morte da agricultura, parte de morte morrida, parte de morte matada, porque se encerram as vias de escoamento (caminhos de ferro) e se encarece o preço de exploração para que o consumidor nacional prefira comprar estrangeiro e assim se prova à CEE que Portugal é bom aluno e até se ganha a medalha de ser o Álvaro Barreto a assinar a "nova PAC".

Caro Chanesco, há quem mate sem espingardas e não receba o merecido coice.

Um abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Escrevi um dislate, confundindo Álvaro Barreto com Arlindo Cunha, este, sim, ministro da agricultura ao tempo da primeira presidência portuguesa da Comunidade Europeia. Foi ele que orientou as negociações para a reforma da política agrícola comum. Viviam-se os tempos áureos do cavaquismo.

Desculpe a asneira.

Um abraço

Chanesco disse...

Quina

É um tema por estudar e suponho que, provavelmente, por estudar continuará.
Após tantos anos extintas, o tema cooperativas de Idanha (Idanha a Velha, Alcafozes com duas ou três – sei terras da Sra do Loreto e de Franco Frazão ocupadas não sei se estas formavam só uma ou se eram duas cooperativas – e da Granja, única que conhecia mas a que na altura não se dava importância, ou está esquecido ou parece ser tabu. Relatos, testemunhos, são difíceis de arrancar porque a maioria dos que lá trabalharam já faleceram e os que poderiam contar a história mostram pouca abertura para falar do assunto. A prová-lo está que por estes dias em Toulões, na procura de pormenores para enriquecer o texto deste post, tentei falar com alguém que embora não directamente ligado à cooperativa, viveu de perto a sua evolução e declínio, e as respostas foram evasivas, quase a pedir o “não me comprometas”.

Vegitas raianas para si

Fátima

É a tal história: “em terra de cegos..”
Provavelmente uma das razões para o povo se remeter ao silêncio, será, de facto, o oportunismo e a ladroagem que grassaram nas cooperativas.
Diga-se que na época, mesmo para os que viviam perto sem estarem directamente ligados, não havia uma perspectiva real dos acontecimentos. Só mais tarde, com algumas revelações de comadres zangadas, se começou a perceber o funcionamento da cooperativa.
As cooperativas foram talvez o início do descalabro da agricultura, por não haver critério nem sistematização. E nem todos os “ricos”, de que falo no texto, grandes agricultores que tinham o “saber fazer”, investiram. Preferiram por o dinheiro a salvo no estrangeiro, andando pelas aldeias a comprar francos aos emigrantes. É que, com o aumento dos preços e a opção por importar, pagar jeiras altas e ficar com a produção nas tulhas era insustentável.

Quanto à sua asneira, penso que não é asneira nenhuma. Ambos se completaram. Ao que por aqui diz respeito, um começou e o outro acabou com a cultura do tomate na campina de Idanha. A CEE impôs a redução das quotas de mercado a Portugal para serem dadas à Itália, o que originou o fecho da fábrica do tomate do Ladoeiro (aldeia hoje conhecida pelo festival da melancia) deixando dezenas de ceareiros, alguns de Toulões, a fazer contas à vida.

Um abraço

Idanhense sonhadora disse...

Pois Chanesco , acho que há mesmo ainda um certo receio de falar nas coisas . Creio que foi algo que ficou na massa do sangue da nossa gente ,dos tempos em que meia dúzia mandavam no concelho todo . Depois vieram outros ou os mesmos voltaram . Por isso é que tenho pena de não ter ouvido o meu pai ,porque ele dizia o que tinha a dizer doesse a quem doesse . No entanto , deixou-me uns escritos que creio que ainda me podem servir para algo .Para o mês que vem vou lê-los mias uma vez .
Vesitas
Quina

António Serrano disse...

Uma história para a História que valeu a pena ser escrita. Também tenho a minha opinião sobre o que se passou aqui mais a Sul - ouvi testemunhos que podiam ser imparciais ou não - e dos que pensam que o que "passou... passou", embora as consequência sejam devastadoras. Mas que deram as cooperativas noutras partes do Mundo? Novos patrões e os mesmos explorados se sempre? A maior Cooperatativa de consumo do País, de que fui sócio quase desde a sua fundação, depois de um período brilhante e de grande expansão - só aqui no concelho de Palmela tinha três lojas e e mais no de Setúbal - deixou-se "abafar" pelos "Belmiros", depois de ter o pássaro na mão... No meu entender, faltaram "Belmiros" na Cooperativa para que o Belmiro não se ficasse a rir...