segunda-feira, março 12

7-2007: A lenda do Gorrão Branco



Todas a terras têm as suas lendas.
Umas mais conhecidas do que outras, todas se enraizaram na cultura popular formando parte integrante de um conjunto de crenças mágico-religiosas que, até há bem poucos anos, condicionavam a vida das comunidades das nossas aldeias, exercendo sobre elas um poder sobrenatural e, ao mesmo tempo, funcionavam como uma espécie de marca de identidade.
Em Toulões, duas lendas marcaram durante anos a vida de toda a população, ao darem origem às tradicionais festas em honra dos santos padroeiros.
A da Senhora das Cabeças, que conta como uma praga de "galfanhotes" bateu em retirada após ter sido organizada, espontaneamente, uma procissão com a imagem da santa, fazendo assim funcionar o poder redentor da fé.
A outra, mais conhecida, (e que oportunamente aqui será lembrada) ganhou alguma notoriedade ao ser integrada no conjunto de lendas escolhidas para serem votadas no concurso "Lendas de Portugal", promovido pelo jornal O Século por volta de 1950 e que foi integralmente publicada por Manuel Antunes Marques, também um filho da terra, no seu livro "Etnografia de Toulões". Também o Dr Jaime Lopes Dias, grande etnólogo idanhense, na sua obra "Etnografia da Beira" Vol.1, contou esta lenda do rapaz que foi levado por um enorme lobo branco. Tendo sido acossado pelos melhores caçadores da região, o seu esforço saiu debalde. Sendo depois invocado o nome de Santo António, advogado para as coisas perdidas, o lobo apareceu morto, tendo o desfecho desta história originado a celebração de uma festa em honra do santo que se repetiu anos a fio, mas que nos dias de hoje só se realiza intermitentemente.

Ambas de índole religiosa, e fervorosamente respeitadas por todos, estas lendas não tinham menos significado que as lendas das mouras encantadas que habitavam as fontes e outros lugares antigamente dados a outros cultos, considerados por vezes "perigosos".
Se nos lembrar-mos da influência que exerciam no subconsciente das pessoas, histórias, como as que se contavam à lareira sobre a Boa e a Má-hora, sobre os poderes malévolos dos cá-vais ou sobre as histórias de lobisomens que apareciam à noite nas encruzilhadas a quererem estropiar quem se lhes atravessasse no caminho e que deixavam os mais novos com arrepios na pele e o cabelo eriçado de medo, podemos adivinhar o poder destas mouras que não podiam ser "acordadas" no seu lugar de repouso, sob pena de o atrevimento desencadear uma supersticiosa desgraça.
É famosa em Toulões a lenda da Fonte do Corno-quebra, ali entre a Toula e as casas do arraial do Monte Velho de Baixo. O touro que se dizia guardar a princesa moura que lá vivia, deu grande ajuda ao guarda do montado, demovendo muita gente de à noite se acercar daquela zona, quando se aventurava pelo meio dos azinheiros na expectativa de conseguir surripiar uns alqueirzitos de bolota para ajudar na engorda do bacorinho ou até para vender, a fim de arredondar a jorna.
As histórias de que o touro teria em tempos encorrido alguns destemidos, surpreendidos a escavar nas traseiras da fonte em busca do tesouro ali guardado, mantinham o lugar a salvo dos ladrões de bolota.
Uma lenda semelhante contava-se acerca do Gorrão Branco, uma enorme pedra de uma variedade de quartzo, (meio leitoso, meio sílex ?), com forma arredondada tal qual um vulgar seixo rolado. Diziam os pastores e outras pessoas que faziam vida no campo, que é provavelmente a maior pedra desta família de rochas existente por aqui e que, inexplicavelmente, aparece apartada das restantes no cimo de um cabeço.
Em tempos idos, quando extensas e ondulantes searas de sementes brancas, principalmente centeio, cobriam a Murracha dando fabrico a terrenos mais agrestes, a alvura daquele pedregulho descomunal, sobressaía na paisagem.
Acreditava-se que a pedra servia de porta, assente sobre a boca de um poço, no qual vivia uma moura encantada que aí guardava um valioso tesouro, composto por uma grande quantidade de pedras preciosas que, em tempos imemoriais, lhe teriam sido oferendadas em noites de lua cheia, por almas que acudiam ao badalar melodioso de um sino de ouro, em busca da salvação eterna.
Dizia-se que quem conseguisse descobrir a entrada do poço teria acesso ao tesouro e poderia usufruir dele da forma que entendesse.
Ligado a esta lenda ficou para sempre o Sapateiro da Malhadinha.
Numa época em que os trabalhos escasseavam, e os trabalhadores eram justos sazonalmente, a profissão de sapateiro dava-lhe, não só algum sustento, mas também alguma independência. Era sabido que não gostava muito de trabalho, mas principalmente, do que ele não gostava era de quem mandasse nele.
Ainda novo, fez-se aprendiz na perspectiva de se estabelecer na arte por conta própria.
E assim foi:
Ganhou alguma fama ao ter-se dedicado a fazer botas de cano alto com duas carreiras de ilhós que eram tão do agrado das mulheres e que, se calhar, hoje fariam furor na passerelle da Moda Lisboa.
Mas um episódio rocambolesco com umas botas encomendadas pelo ti Mandonça, a serem feitas com rasto de um pneu, uma novidade que vinha substituir as solas cardadas, que nunca apareceu e que valeram ao homem a alcunha que nem eu aqui quero dizer, deitou tudo a perder.
O descrédito e concorrência feroz de alguns sapateiros já credenciados como eram o ti Zé Tomaz "Sapateiro", ti Chequim "Grande", e o ti "Ferro" e de outros que apareceram depois, levaram-no a abdicar.
Depressa teve de mudar a agulha. Ganhar a vida a coser sapatos, não dava para chegar a netos e trabalhar mandado não era seu propósito.
Apesar de nunca ter deixado completamente a profissão, era mais o tempo que passava no garimpo, lá pelas barrocas da serra, do que agarrado à sovela.
O frasquinho com as pepitas da sorte, amealhadas e guardadas religiosamente, bem mais lucrativas, valiam uma boa maquia paga pelo ti Catchapim, um velho ourives de Alcafozes que, a cavalo na sua motorêta com a caixa das jóias amarrada ao suporte traseiro, percorria as redondezas, de aldeia em aldeia, pouco ou nada preocupado com problemas de insegurança, coisa impossível actualmente, mesmo neste recôndito reduto.
Talvez levado pela febre do ouro, a notícia do achado, por um ganhão, de um pote com moedas de ouro ali por trás da Serra, já a dar vistas para Monsanto, e as histórias algumas vezes ouvidas aos mais velhos a respeito de outros acontecimentos semelhantes, trouxeram-lhe à ideia a lenda do Gorrão Branco.
Consultado o lunário perpéctuo e os astros, o Sapateiro tratou de arranjar a ferramenta necessária para dar medida à sua desmedida ambição, e, no dia escolhido, lá foi, sorrateiro, pelo caminho da Serra até ao sítio por muitos temido e por outros tantos desejado.
Ao fim de uma semana de trabalho intenso já tinha cavado um enorme buraco junto ao gorrão, mas vestígios do tesouro: nada.
O Mné Rijo, que também garimpava nas horas vagas, dirigia-se à Barroca das Bruxas onde guardava os atrafícios do trabalho complementar, e causou-lhe alguma perplexidade ao avistar ao longe um monte de terra a fazer vulto ao simbolismo daquela pedra. Abeirou-se para ver o que estava a acontecer e surpreendeu o espalhafatoso do sapateiro em plena actividade, já enterrado até ao pescoço. Um pouco incomodado por ter sido descoberto naquela prebenda, ainda tentou esboçar uma justificação, mas o Rijo que conhecia bem a medida da sua ambição, atalhou logo:
-
Se queres trabalhar p’ra aquecer devias era ir a ratchar lenha e acender um lazarete. O que aqui cavaste já dava p’ra abrires um poço na tu’ horta, que bem falta te faz.
O sonho do tesouro do Gorrão Branco morreu ali, mas para o Sapateiro da Malhadinha, a enorme pedra não deixou de constituir uma china no sapato.
De descrédito em descrédito, na sua persistência engendrava expedientes para fazer face às agruras da vida.
Notava-se que passava por dificuldades mas não lhe falassem em trabalhar, que ele acabava sempre por recusar.
Vinha o verão:
- Atão este ano no fazes um quinto? – perguntavam-lhe.
- Ná. Ainda tenho uns pares de sapatos para gaspear. Odepoi, lá mai pr’o Inverno, vou atão a zêtona.
Vinha o Inverno:
- Atão no era pra andares já à zêtona.
E ele respondia: – Ná, este ano no fui, mas pr’o verão vou fazer um quinto.
A história repetia-se ciclicamente.

INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS


atrafícios; utensílios, ferramentas
cá-vai; o mesmo que noitibó
china; pedrinha
encorrido; escorraçado
estropiar; patear, espezinhar, estragar
fazer vulto; fazer sombra, fazer passar para segundo plano, causar estorvo
lazarete; grande lume, brazeiro
quinto; ceifa de empreitada em que a "paga" era uma quinta parte da quantidade ceifada.