quinta-feira, fevereiro 26

2- 2009: O Carnaval dos Toulões (crónica)


Adeus Entrudo, viva o Carnaval.
Apesar de se dizer que Entrudo e Carnaval são uma mesmíssima coisa, tenho por mim que, por este recanto da Raia Perdida, o Entrudo sempre manteve alguma distância em relação ao Carnaval. Embora ambos sejam sinónimo de folguedo, de comportamento provocador, de excessiva falta de respeito, Carnaval era coisa que piava fino, coisa mais palaciana.
O Entrudo não: beirão dos sete costados, bruto do quinto dos infernos
, chocalheiro, trogalheiro, era mais terra-a-terra, mais intimista, mais do povo.

Sempre viveu paredes-meias com o Entrudo do lado e juntos… o Entrudo era o Diabo.
Nunca destapava a cara. Cobria-a com um reposteiro velho, um farrapo azado ou um pano de renda surripiado ao bocal de um asado onde cumpria a função de o enfeitar e proteger o copo e o telhador das cagadelas desses dípteros domésticos, exímias máquinas voadoras que dão pelo nome de moscas, quase tão aborrecidas quanto o Entrudo.
Enquanto fazia a ronda pelas ruas, às vezes de casa em casa, atentando meio mundo com as suas tropelias e as mais diversas manifestações de escárnio, o Entrudo defendia-se de todas as investidas assovinadas pela calhandrice, na tentativa de não se deixar desmascarar. Pois era o anonimato, às vezes difícil de manter, que transmitia ao acontecimento um certo clima ritualista.
Em tempos idos, este personagem exercia na canalha um fascínio que inspirava tanto a curiosidade da descoberta (saber quem se escondia por detrás daquela carantonha), como o medo associado à possibilidade de dar de caras com um dos seres sobrenaturais que povoavam a sua imaginação, alimentada por histórias contadas pelos mais velhos ao serão, às vezes verdadeiras lições com que se iniciavam os garotos na formação da maturidade e no ganho de afoitesa.
Este ano, decididamente, o Entrudo dos Toulões deixou cair a carantonha. Contudo, se na forma de se expandir tende para uma colagem a algum modernismo importado que não trás nenhuma mais valia, vindo apenas espicaçar o vírus do consumismo que também já contaminou às aldeias, o espírito no seio das famílias manteve-se fiel ao tradicional.
A prová-lo está o cortejo que no Domingo Gordo percorreu as ruas do povo, realizado após um bom almoço em que não faltou a tradicional bexida dos ossos e o arroz doce que dantes era servido numa travessa, com muita canela, e se comia de barranhão.
Como já uma vez aqui referi, foi um daqueles acontecimentos com os quais somos apanhados de surpresa quando cá chegamos, desprevenidos, apenas para retemperar.
Numa tentativa de dar animação à aldeia, a Junta de Freguesia em boa hora se lembrou de organizar um concurso de Carnaval, com prémios e tudo, apesar das limitações inerentes à falta de meios. Tocou a mobilizar, inscrições feitas e foi levado a cabo um corso carnavalesco à semelhança do que se vai fazendo noutras terras. Mesmo um pouco contra o que se previa, a adesão foi massiva e a imaginação dos farsantes não podia ser mais profícua.
Este facto confirma as tradições das aldeias como um elemento aglutinador e impulsionador da coesão entre os seus habitantes, tanto dos residentes como dos que vivem fora, muitos deles, por lá, mortinhos por matar saudades da família e dos amigos.
Com três carros alegóricos, dois deles bem representativos da etnografia local, onde não faltou a brejeirice que caracteriza estes eventos e um terceiro, marcado pela originalidade de ser um carneiro a puxar uma "carroça".
Também um sem número de foliões de todas as idades, mais ou menos vanguardistas, todos de cara destapada, deram corpo ao desfile. Até o Bata, vejam só, teve as aldrácias de transformar aquele belo exemplar de Labrador que lhe guarda o quintal num andrajoso manequim da casa Chanel e correr as ruas com ele pela trela.
A lembrar o Entrudo à moda antiga, também não faltou a emblemática Vaca-Galhana (vê-la também aqui) que desta vez, sem a fugacidade do manobrador (o Tónho Faca já deve andar nos setentas), passou mansa e sem deixar, na calçada, o rasto perfumado da sua passagem.
Pelo que se comentava, foi um acontecimento sem precedentes apesar de algumas memórias ainda darem fé de um famoso cortejo realizado no início dos anos 80 sob a temática do contrabando.
Consta que as ruas se encheram de burros carregados com sacos de palha a fazerem as vezes das cargas do café, perseguidos pelos Carabineiros espanhóis com os seus característicos "chapéus em folha-de-flandres", substituídos por caldeirinhas de lata e penicos de esmalte do mais fino talhe e também pela Guarda Fiscal que marcou presença trajada a rigor, com a habitual farda de cotim e umas reluzentes polainas confeccionadas com a melhor cortiça virgem que se produz no nosso montado.
Foi uma paródia em redor de assunto sério que marcou uma época, quando o recurso ao comércio ilícito de produtos entre os dois lados da fronteira, sempre vigiada pelas autoridades, era um meio de sobrevivência para muitas famílias.
Um dos "quadros" que mais marcou quem assistiu ao Entrudo desse ano, e porque a jocosidade é do que mais resiste à limpeza da memória, foi a imitação do ti Felizardo e do Chico Calibranca. Esta dupla de contrabandistas, pai e filho, que nunca levou uma carga de café para Espanha sem ser às costas, tinha uma particularidade contada por quem acompanhava com eles.
O Chico, com ligeiro atraso de intelecto que não lhe permitia assimilar uma réstia de educação, não conseguia conter uns frequentes, e às vezes denunciadores, ataques de flatulência de que era acometido durante as caminhadas pela calada da noite com a carga às costas, não guardando assim o respeito devido ao seu progenitor.
Como no Carnaval ninguém leva a mal e que no Intrudo vale tudo (menos tchincar olhos, como dizia o ti Lavacolhos) a coisa compôs-se.
Pegando neste "rabo-de-palha" (salvo seja), dois Entrudos galhofeiros desse ano vestiram a pele do ti Felizardo e do filho. Este, servindo-se de um dispositivo que imitia uns bem sonoros flatos, não se livrava do ralhête do pai:
- "Um-rais-ta-caia Tchico, atão adonde é q’está o respêto. Ah mê javardo, atão tu peidas-te assim… à mnha frente… sem mai nem menos."
E durante todo o percurso, lá lhe vai o pai arriando umas valentes cartchantadas no Chico, para o tornar mais comedido com o uso da artilharia.

Mas este ano foi diferente: maior participação, alguma organização (a coisa não foi espontânea), mais condizente com a realidade actual e com algumas partidas valentes às quais também não escapei.
Lá me pregaram a partida de, à última da hora, como mandam as regras carnavalescas em que o improviso é o melhor conselheiro, ser integrado no júri e ter de repartir a injustiça que foi definir uma ordem de classificação dos participantes inscritos, para a atribuição dos prémios.
A verdade é que, independentemente dessa ordem final, apesar da crise deprimente que se faz sentir e com a Europa a considerar-nos um país de taciturnos, como diz o meu amigo Fortunato no seu Lusonews, o Carnaval dos Toulões deixou o povo feliz.