sábado, fevereiro 24

6-2007: A Vaca Galhana

A Vaca Galhana
(clicar sobre o desenho para ampliar)
Como o prometido é devido, aqui deixo o complemento referente ao post anterior e, à falta de foto, uma tentativa de ilustração do acontecimento que mobilizava as gentes de Toulões nos dias de Entrudo.
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Por entre uma infinidade de tradições carnavalescas que nos é dado conhecer nas mais diversas formas de divulgação, ou do conhecimento das tradições nas aldeias das redondezas, não há registo de nada que aluda à Vaca Galhana, que nos dias de Entrudo, tresmalhada pelas ruas do povo, investia à marrada contra tudo o que mexesse e balançava o seu rabo enchapoçado de água ou de lama, conspurcando a fatiota aos mais imprevidentes.
Pode mesmo considerar-se esta tourada trapalhona um acontecimento sui generis, que mobilizava toda a rapaziada (era uma brincadeira de rapazes), sendo diversos os que encorpavam o animal e se iam revezando. Alguns mais expeditos faziam gala em mostrar a sua arte no manobrar do engenho, símbolo de coragem e virilidade, enquanto outros mostravam os seus dotes a esquivarem-se do dito. Apesar do espalhafato que provocava e dos aparato que chegava a roçar a violência, tinha grande aceitação por parte de todos e era considerado o momento alto do Entrudo em Toulões.
Ninguém sabe quem é o pai da vaca. Sendo de origem desconhecida, pode dizer-se que o espírito que norteava o seu comportamento se assemelha ao dos Caretos, que, endiabrados, percorrem as ruas das aldeias Transmontanas. O nome advém, presume-se, da forma galhana (atabalhoada e mal composta), com que a vaca era manobrada no decurso deste insólito divertimento.
A Vaca Galhana era constituída por um par de varilhas, um par de cornos, que se guardavam de ano para ano, fixos solidariamente a uma das travessas (a que ficasse à frente), formando a cabeça do bicho. Os mais criativos penduravam um chocalho para assinalar a sua presença e para dar mais realismo à figura.
Na rabadilha atava-se um bocado de calabre, com um farrapo de saca na ponta, formando o tufo que constituía a ponta do rabo da vaca, considerado o elemento principal do arranjo, pois era dele, depois de bem ensopado, que dependia o sucesso das investidas.
Assim como por onde vai a agulha vai a linha, também por onde ia a vaca lá seguia o “rabejador ou aguadeiro” a fazer chegar o caldeiro do encharcado, para ensopar o rabo.
Como as ruas eram em terra, quando chovia, dispensava-se o caldeiro. Era nos charcos de água lamacenta formados no chão, que o rabo da vaca se enchapoçava e aqui o estrago mudava de monta. Para se proteger do seu próprio rabo, o manobrador usava uma saca pela cabeça, dobrada a fazer de capuz, que também lhe protegia as costas.

Contam os mais velhos que até princípios da década de 60, antes de se ter dado inicio à debandada, quase generalizada, da população mais jovem, na expectativa de encontrar noutras paragens melhores condições de vida, as ruas se enchiam de gente para correr a Vaca Galhana. Como naquela altura havia os partidos que rivalizavam entre si, aconteciam despiques que davam azo a que mais que uma vaca espalhasse a confusão pelas ruas, sendo, com alguma frequência, os encontros entre elas pretexto para ajustes de contas.
Diz-se que nesta ocasião no Entrudo se perdoa tudo, mas eram bastas as vezes em que o ditado não era seguido à letra.
Ficou célebre o episódio do Manhouvas, grande manobrador da Vaca. Deixando-se antecipar pelo Mné Ferrenho na hora de pedir namoro à Mari Blouca, vingou-se enchapoçando o rabo numa bosta com que as primas da Galhana costumavam perfumar o ambiente e lho deu a cheirar sem pedir licença. O Mné Ferrenho não foi de modas. Mais esperto, na primeira oportunidade retribuiu a delicadeza ao Manhouvas. Agarrou no caldeiro de vianda que a ti Catcheirinha tinha à porta, pronto a levar para a engorda do marranchito que tinha numa furda da malhadinha, e despejou-lho de chapeirão nas ventas.

Já houve que se lembrasse de fazer renascer a tradição, mas tratando-se de um divertimento que ficaria fora de contexto na época que corre, por em termos de higiene não ser o mais recomendável, a ideia não vingou. Visto com os olhos de hoje, as proporções de insalubridade e violência que atingia, parece desadequado, mesmo se às vezes punha em sentido a prosápia, a soberba e os afins.
Considerando as tradições como um dos principais factores de conservação dos laços de união entre filhos da mesma terra, também eu gostaria rever a Vaca Galhana, em moldes mais consentâneos com a nova realidade das aldeias, fazer de novo encher de gente as ruas de Toulões.
Temo, entretanto, que algum figurão, tipo político com ideias iluminadas que dá tiros no pé, se lembre de confundir o comportamento de vaca louca da Galhana com os sintomas da BSE e faça Toulões desaparecer de vez.

INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS

enchapoçado; ensopado
encharcado; mistura pastosa insalubre
calabre;corda grossa e resistente utilizada para atar as carradas
marranchito; bacorinho
partido; grupo restrito de rapazes que organizava bailes privados, condicionando ou proibindo o acesso a elementos masculinos extra grupo, não convidados. Eram geralmente identificados pelo nome de um dos elementos com maior destaque ou pelo nome do tocador que animava esses bailes.
varilhas; armação feita com duas tábuas aparelhadas, unidas nas extremidades por duas travessas emalhetadas, que habitualmente eram utilizadas na peneira da farinha para o pão, apoiando-as nas abas transversais da masseira sobre as quais deslizavam duas peneiras geminadas num movimento de vai-vem.

sexta-feira, fevereiro 16

5-2007: Entrudo tchocalheiro

Malta dos tchouriços - 1982
O Entrudo sempre foi sinónimo de borga, pândega e folia desmedidas, perdendo-se no tempo a memória da sua origem.
Entrudo e Carnaval são duas palavras com etimologias diferentes mas que possuem o mesmo significado: o período entre o Domingo da Septuagésima e a Quarta Feira de Cinzas
O termo Entrudo terá origem na palavra "introitus" que em latim significa entrada, conotada com as festas Saturnalias que comemoravam o recomeço de um novo ciclo da Natureza, mãe de todas as coisas.
Entretanto, para o termo Carnaval parece não haver unanimidade de opinião quanto à sua origem. Para alguns deriva de "carnevalemen", (o prazer da carne); para outros terá surgido do latim "carnevale" (adeus carne), ideia reforçada pela cultura cristã que aparece a impor a celebração de um período de abstinência entre o Entrudo e a Páscoa a que se deu o nome de Quaresma.
Há ainda quem defenda que é proveniente das manifestações Gregas em honra de Dionísio, deus do vinho e da inspiração, nas quais o "carrus navalis" era o carro que transportava uma enorme cisterna com vinho para dessedentar os foliões que, depois de bem bebidos, cometiam os excessos "carrus navalescos" (digo eu).
O verdadeiro e genuíno Entrudo à nossa moda, à Portuguesa, provocador, desordeiro, onde a falta de respeito era tolerada até ao limite da paciência, do qual, por aqui, já pouco resta, foi destronado pelos hábitos telenovelescos com rainhas brasileiras ou abrasileiradas que, de corpo ao léu, abanam freneticamente as bundas ao ritmo do samba, nos corsos que percorrem as ruas das cidades do litoral sob a capa do desenvolvimento turístico.
Aqui por Toulões e demais povoações do interior, aliada ao despovoamento, a tradição do Entrudo foi-se perdendo, dando também lugar a uma inspiração moldada pelo modelo carioca e fomentada pelo facilitismo do acesso ao comércio dos 300.
Já lá vai o tempo das carantonhas feitas com uma renda roubada ao telhador do asado, que punha as calhandreiras, curiosas, a conjecturar e a especular sobre quem encorparia aquele traje de disfarce, constituído por uma roupa velha qualquer. E faziam-se apostas para ver quem conseguia percorrer as ruas da aldeia sem ser reconhecido.
Hoje qualquer conjunto de máscara horrorosa e fato a condizer, se adquirem nas lojas chinesas, mas que não valem uma "pêrra-tchica".
Era o tempo das cacadas, com vasilhas de barro roubadas dos quintais e muitas vezes despejadas do seu conteúdo. Com alguma malvadez inconsciente se vertiam as azeitonas, que tanto trabalho deram a colher e estavam agora a adoçar já quase no ponto de servir de conduto em muitas refeições, para levar a talha pela calada da noite, que oportunamente se iria estchabaçar no lajedo da entrada de uma casa cujo dono tivesse calhado na rifa dos entrudos.
Era também o tempo das batalhas com as inofensivas charingas de cana com que os garotos se borrifavam com jactos de água; com os pestilentos "ovos tchocos" que deixavam um cheiro entranhado na roupa não havendo sabonária que o desalojasse. Havia ainda a batalha das laranjas (laranjada) que tantas vezes deixava as raparigas com nódoas negras nas costas que, por essa razão, felizmente há muito desapareceu.
Desapareceu também a vaca-galhana que era o ex-libris do Entrudo em Toulões e que será objecto do próximo post.
Era também o tempo das zurras e das tchocalhadas, em que os jovens percorriam as ruas a tocar chocalhos e caldeiros, numa arruada de algazarra e desassossego que incomodava meio mundo, satirizando e ridicularizando o outro meio, parava à porta de quem durante o ano tivesse dado motivos para pertencer ao outro meio. Bastava não cumprir com os preceitos impostos pelos foliões.
Do tempo em que se apanhavam cães na rua, se lhes atava uma lata ao rabo e untava o cu com malagueta. Era vê-los fugir da lata rua afora, caim-caim, com o fogo atrás como um foguete e a lata a bater no cu. E quanto mais o cão fugia mais a lata no cu lhe batia.
Já lá vai o tempo em que no Domingo Gordo, à laia das janeiras, a rapaziada percorria as ruas do povo a "pedir os chouriços" de porta em porta. Cantavam-se umas quadras ao toque da concertina …
Ó senhora cá da casa
Chegue-se aqui à janela
Venha dar-nos um chouriço
Uma moura ou morcela.

E ai de quem se negasse a não recompensar este esforço dos rondistas, com uma peça do fumeiro, de preferência o "tchourcito" da ordem, mas um pão ou um pichorro de vinho também eram bem vindos para ajudar à comesana, que antecedia o "adeus à carne" num jejum de quarenta dias.
Com essa falta, uma cacada com cinza era quase certa ou então uma zurra à porta, ainda maior que a de ter deixado cair o porco do banco no dia da matança.
Por falar em matança, uma tradição de grande autenticidade e ainda fortemente enraizada nos hábitos da população é a de, no dia de Entrudo, se comer a bexiga dos ossos que, ao que parece, e fazendo fé no que vai constando, qualquer dia também desaparece por se estar a tentar proibir a matança do porco.
Seja como for, Entrudo ou Carnaval, será um acontecimento que continuará, ainda que de forma ténue, a marcar uma época do ano por estas terras.
Naquele tempo, todo este excessivo reboliço era tolerado pelo sistema de poder num manifesto abrandamento do exercício da autoridade, que parecia sempre mais atenta a comportamentos político-sociais que a manifestações festivas ou de divertimento.
Uma festa de liberdade, onde tudo é permitido e onde preceitos e bons costumes ficam esquecidos, o Entrudo, durando apenas três dias, acaba na Terça-feira à meia noite, morto à queima roupa, com tiros de caçadeira disparados pelos caçadores dos Toulões.

sábado, fevereiro 3

4-2007: Desmancho



É ponto assente que o aborto mexe connosco.
E não é para menos dada a importância que revela, estando em causa, decidir ou não, pela condenação de uma mulher por ter tomado a opção de abortar, porque, de algum modo, carrega uma barriga "prenha" de angústias, como se não pudesse dispor da sua liberdade.
Quanto ao que se pede na pergunta ao referendo, a informação que vai chegando, não sobre o que se pergunta em si, que é concreto, mas sobre o acto de abortar, vinda principalmente dos extremos que radicalizam posições, de tal foma, que criam um ambiente tão nebuloso que deixam o povo votante cada vez mais baralhado, levando-o a abster-se do interesse pelo assunto.
Com todas as questões de ética levantadas, o problema do aborto parece apenas um digladiar de argumentos entre a ciência e a religião, não esclarecendo sobre a verdadeira utilidade do voto nem nem sobre o problema fundamental: o bem-estar da mulher que decidiu abortar.
O aborto ou desmancho (termo que se utiliza mais por aqui) sempre se fez pela calada, utilizando os mais diversos métodos abortivos, todos tão perigosos e em condições que sempre deixaram marcas, tanto físicas como emocionais, pondo, quantas vezes, a sua vida, periclitante, nas mãos misericordiosas de Santa Quitéria.
As mulheres que decidirem abortar, deverão poder fazê-lo, dentro dos limites que a lei lhes confere, em condições sanitárias decentes, mas se
tiverem de o fazer fora da lei, que a espada, em cujo gume brilha o ponto 3 do artº 140º do Código Penal, não seja desembainhada para lhes cortar a dignidade.