sexta-feira, abril 27

10-2007: Trabalhos de Maio

Cabo Ruivo - Lisboa 1958
Construção de um empreendimento industrial
Foto de autor deconhecido

Passadas as celebrações do 25 de Abril, trinta e três anos depois, os cravos da Liberdade parecem definhar a cada ano que passa.
E não é de admirar! Basta ver o respeito que algumas entidades públicas guardam pelos valores de Abril. Como exemplo, a pontaria da presidência da CML, na escolha da data de inauguração da polémica obra do túnel do Marquês, talvez perspectivando lá poder enterrar os poucos cravos que ainda mantêm algum viço, ou então esconder os rabos de palha de algum manjerico sob suspeição, enquanto o desfile comemorativo da efeméride lhe passa por cima.
Bom, mas vamos ao início!
Em 1974, para a maior parte da gente das aldeias do interior raiano, o anúncio do fim da ditadura teve o mesmo impacto que tivera o 5 de Outubro de 1910 com a queda da Monarquia e a implantação da República ou, mais recentemente, o primeiro passo em solo lunar por parte do americano Neil Armstrong, ou seja: impacto nulo a que nem se pode chamar indiferença nem incredulidade.
A mente da população, mantida na ignorância, era impedida de alargar horizontes para lá das fronteiras do seu termo e compreender o 25 de Abril, foi uma árdua tarefa que chegou a conta gotas.
Ninguém tinha consciência política e o único governo que conheciam era apenas o seu próprio governo. Aquele com que geriam o ganha-pão para o sustento da casa e da família.
Dos governantes que conduziam os destinos da nação apenas conheciam os que zelozamente pairavam pendurados sobre o quadro negro da escola, representados pela nova Santíssima Trindade: Jesus Cristo redentor, ministro de Deus, crucificado para salvar o Mundo, auxiliado na sua laboriosa gesta pelo chefe do governo ao momento, um homem austero, que adorava seroar em família, permanecia, tal como o seu antecessor, orgulhosamente só, pendurado à direita de Cristo Pai.
Do outro lado, estava dependurado o chefe do estado. Enfaixado, olhando fixamente para a parede em frente com carranca de poucos amigos, fazia do uso da tesoura o seu modo de evitar a inépcia.
O país desandava a pão e vinho e cantava-se o fado da "sardinha para três", que contava a história da miséria, num tempo em que o fraco sustento dependia de uma economia enfezada, proporcionada por uma decadente agricultura tradicional, caracterizada pelo uso de velhos métodos que não acompanharam a evolução surgida na Europa depois da Segunda Guerra, só atenuada após o aparecimento da metalurgia do Tramagal.
Para escapar deste quadro dantesco, muita gente nova foi levada a procurar outro modo de vida em terras do litoral, principalmente em Lisboa.
Chegada a idade para trabalhar, aí com 11 ou 12 anos, muitos garotos eram despachados "a escorregar, tábua abaixo" (como dizem alguns alfacinhas invejosos do que o seu suor produziu) até à capital, para servir de mocinhos de recados e de caixeiros em lojas e mercearias.
Os mais velhos, já com a tropa feita, candidatavam-se a incorporar os contingentes das forças de segurança, os sapadores bombeiros, que lhes garantiam um emprego com condições dignas para poderem ajeitar a vidinha.
Para os que não conseguiam ou para aqueles a quem o trabalho não correspondia às expectativas, sobrava a construção civil. Trabalho mais duro, é certo, mas não menos honrado e com um horário que nada tinha a ver com o sol-a-sol das jeiras agrícolas.
Mas alguns Toulonenses que tentaram a aventura lisboeta, sentiram-se atraídos pela envergadura das chaminés fumegantes que rasgavam o horizonte sobre as águas do Tejo, avistadas do outro lado do rio mesmo em frente ao Terreiro do Paço.
Era o sinal da industrialização que transformara o Barreiro, outrora terra de fragateiros, num dos maiores pólos de desenvolvimento do país e que dava pelo nome de Companhia União Fabril.
A CUF clamava por braços de trabalho e foram estes homens de mãos calejadas que formaram a grande mole operária, que de trabalhadores rurais rapidamente passaram a operários fabris de uma indústria que florescia num desabrochar primaveril, prontos a limpar da memória o grito justo de revolta contra o estampido do chicote dos feitores.
Chegados à grande urbe, esta deu-lhes a conhecer uma nova realidade: a luta operária na defesa de melhores condições de trabalho, coisa que na ruralidade raiana, nunca entrara em sonho nenhum.
Alguns mais deslumbrados, depressa se viram enredados na entusiasmante malha ideológico-partidária e no consequente trabalho de campo de fazer chegar a todos os que partilhavam dos mesmos ideais a informação que uniformizava o pensamento e que tornou a CUF no principal bastião da luta proletária.
Vieram as reuniões secretas às tantas da noite no Pinhal do Forno, para os lados de Alhos-Vedros, ou no Pinhal do Castanho nos arrabaldes da Baixa da Banheira, onde ouviam as palestras dos "cabecilhas", alguns com experiências trazidas de outras reuniões clandestinas, organizadas nos montados do Couço e outros lugares do Alentejo.
Ali se vinham ouvir notícias do mundo operário que ajudavam a delinear estratégias de combate laboral.
O ti Sebastião, funcionário da CUF quase desde a sua fundação, Toulonense que nunca se negou a dar a mão a um conterrâneo, fora sufragado pelo destino para tomar conta da telefonia. Colocava um o copo com água sobre o aparelho para afogar as frequências denunciadoras antes que chegassem aos detectores da Legião, que formava acérrimas milícias anticomunistas.
E foi numa noite de 1 de Maio que, através da onda curta da Rádio Moscovo, chegou solenemente pela voz de um ex-colega do ti Sebastião, Francisco Ferreira (Chico da Cuf), exilado na URSS, a mensagem, palavra de ordem, proclamada cerca de cem anos antes por Karl Marx:
PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!

sábado, abril 14

9-2007: As alvíssaras

A nomeada da Senhora do Almortão (ou do Almurtão) expande-se muito para lá da campanha da Idanha, tal como referem algumas quadras da cantiga. O ecoar do seu "cancioneiro" chega aos quatro cantos do país, recriado pelo talento de grandes nomes do nosso panorama musical, trazendo alguns benefícios na implementação do turismo nesta região.
Vultos como Zeca Afonso, Amália Rodrigues, Dulce Pontes, Janita Salomé, e outros, dando voz ao tema da Sra. do Almortão, encantados com a sua musicalidade, tornaram ainda mais célebre esta ária considerada o hino do município de Idanha-a-Nova.
Muitas vezes, inadvertidamente, dávamos connosco a cantarolá-la, um pouco à maneira de como, em grupo na escola, se estudava a tabuada em voz alta: "Todos sabíamos a música de cor, mas alguns tardavam a acertar com a letra".
Se a Senhora do Almortão (a cantiga) é conhecida pela quase generalidade dos portugueses, pela simplicidade de três ou quatro quadras que unanimemente foram escolhidas pelos cantores atrás referidos, das quais se destaca uma, talvez a mais conhecida, tida como uma sentimental manifestação do patriotismo raiano, pedindo à "tão linda arraiana para virar costas a Castela e não querer ser castelhana", poucos saberão que esta canção não tem letra definida.
Todos os anos, novas quadras de cariz popular, muitas delas improvisadas num despejar de alma, são cantadas por vozes anónimas, principalmente por mulheres devotas dos povos das redondezas dando vida nova à cantiga.
Acompanhadas por concertinas, realejos, zamburras e pelo rufar ritmado dos adufes que elas próprias (as agora designadas Adufeiras) tocam de forma tão exímia, com essas novas quadras cumpria-se a tradição de "dar as alvíssaras à Virgem do Almortão", como que a fazer anunciar a chegada do "rancho" à romaria, para venerar a santa padroeira do concelho.
A criatividade dessas quadras, juntamente com a actuação dos romeiros no alpendre à porta da ermida, chegaram mesmo a ser apreciadas por um júri, com vista a premiar os melhores desempenhos, tendo havido anos de grandes despiques entre aldeias, para ver qual delas ganharia "o ramo".
Esta tradição também era naturalmente cumprida pelas gentes de Toulões.
O canto de um grupo de mulheres, às vezes esganiçado, mas sempre afinado por uma fé inabalável, mesmo abafado pelo som dos diversos instrumentos que as acompanhavam, convenceu o júri a atribuir-lhes o simbólico troféu, que eu me lembre, por duas ou três vezes.
Era ainda a altura em que os cantares eram ensaiados durante a viagem em grupo, feita em carros de vacas, carroças engalanadas, burros e cavalos albardados com adornos garridos em que se parava a meio percurso para almoçar e dar também repasto às bestas.
Pelo caminho afinavam-se as gargantas. As mulheres cantavam para decorar os versos novos e os homens, incluindo os tocadores que pouco ou nada cantavam, também afinavam as suas, mas era mais com a "borracha" do vinho à laia espanhola.
Para a maioria destes, o "ir dar as alvíssaras" era uma quase obrigação num toca a despachar porque na festa há outras prioridades.
Terminada a intervenção, empinados à porta da capela, os homens empontavam as mulheres com a canalha e, acompanhando os tocadores, iam eles dar a volta às capelinhas e ler umas epístolas, balcão aqui, balcão ali. Os cânticos a Nossa Senhora depressa descambavam em despiques à desgarrada entre romeiros de diversas freguesias, sempre ao toque da concertina.
Até à hora da missa campal e da procissão que se lhe segue não havia regra.
Mesmo para alguns, só a derradeira morteirada da descarga pirotécnica a assinalar o final da procissão, que para as mulheres significa o recolher de Nossa Senhora à ermida e para os homens o recolher dos romeiros à sombra onde os espera uma merenda bem farta, punha termo ao sempre a aviar.
Contava-se a história de tocador "afamado", ainda com a figadeira a destilar os excessos dos três dias de festa em Toulões em honra da Senhora das Cabeças, que se realiza nas vésperas da Sra. do Almortão, para além de carregar com a concertina carregava também com uma valente borratcheira.
Quando quis recolher ao local onde tinha a merenda, para ir mais leve, foi aliviar a carga nas traseiras do muro que circunda o recinto. Já sem força nas pernas, aí ficou de joelhos um bom catcho numa penitência involuntária, com corpo sobre a sanfona e o chapéu caído por terra perante um ror de gente num constante formigar.
Na hora da abalada, depois de mais uma volta pelo recinto para comprar as últimas lembranças aos que não puderam vir à festa, o "rancho" preparou-se para a cantadela na apresentação das despedidas à santa, mas do tocador não havia rasto.
Encontrado em maus preparos e com a cabeça ainda pesada, a custo lá se levantou.
Rabugento, apanhou o chapéu do chão e qual não foi o seu espanto que, ao pô-lo, tilintaram-lhe umas quantas moedas na careca. Uma esmola de dez ou quinze marréis fora deixada por alguns fiéis mais caridosos que o confundiram com um mendigo.
Lá se compôs e foi com o grupo cantar o "até pró ano". Ele, que raramente cantava, embalado ainda pela desgarrada de umas horas atrás, saiu-se assim:
Senhora do Almortão
Ajoelho-me a vossos pés
Bem-haja por esta esmola
Que vale bem uns copos de três

Bem, esta quadra não pertence certamente à recolha feita por alguns ilustres idanhenses, estudiosos do fenómeno poético dedicado à Senhora do Almortão, mas, agora que já vos oiço a trautear a cantiga, aqui vos deixo umas quadras de Toulões, (que poderiam bem ser de outra terra qualquer do concelho), para poderdes cantar no dia 23 de Abril (de segunda feira a oito dias) já que este ano eu não vou poder lá estar.

Senhora do Almortão
Este ano já trago noivo
Venho-vos agradecer
Com estas flores de goivo

Refrão (substitui o bem conhecido "olha a laranjinha...")
Vai de fogo e mus’ca
Q’arrail tão lindo
Ai, velhos e novos
Tudo lá vai indo
Vai devagarinho
Sem alevantar pó
Trai-lari-lo-lela,
Trai-lari-lo-ló

Senhora do Almortão
Já passei o Aravil
Levo-vos rosas brancas
No regaço do mandil

(refrão)

Senhora do Almortão
Nossa Santa padroeira
Vimos enfeitar-vos o andor
Com rosinhas de albardeira

(refrão)

domingo, abril 1

8-2007: BOA PÁSCOA



Ainda ontem era Entrudo e já passaram os 40 dias que permeiam entre a Quaresma e o Domingo de Ramos. O Domingo Florido, como o ti Chico-à-Rolha, sacristão, pelo menos três quartos da sua vida, lhe chamava, dá início às celebrações liturgicas da Semana Santa que culminam nos festejos da Páscoa.
Este dia volante, estipulado pelo calendário gregoriano com base num método de cálculo que o ti Chico conhecia de cor, serve de referência para a marcação de todos os feriados eclesiásticos.
Esse método, revelado aqui, permitia-lhe anunciar ao povo a data em que calharia a Páscoa no ano seguinte.
Posso adiantar, em primeira mão, que para o ano é no dia 23 de Março e é, garantidamente, a um Domingo.
Pelo menos é o que diz o calendário para 2008.
Bom, mas mais importante que os 40 dias, voláteis como o éter, foram os 365 e mais alguns, que depressa passaram desde o nascimento deste blogue.
Tão depressa que nem eu me apercebi do completar deste primeiro ano a contar algumas histórias, simples exercícios de memória, que, apesar de isentos de qualquer rigor histórico ou sociológico (isso fica para os especialistas), com eles tento mostrar como era a vida numa aldeia rural da Raia Perdida.
A marcar a passagem deste primeiro ano, quero aqui deixar, bem expressa, uma palavra de agradecimento a todos quantos tão amavelmente me vão deixando mensagens de incentivo, tanto nos comentários como no email.
Votos de uma Páscoa feliz para todos!!!!