quarta-feira, fevereiro 27

6-2008: 2 anos passados...

Eu tenho em casa uma arca

Eu tenho em casa uma arca
feita de ferro e madeira
onde guardo coisas velhas
guardadas de igual maneira
velhos bocados de trapo
restos de loiça e metal
coisas que têm bons cheiros
ou que talvez cheirem mal
mas que são testemunho
do que fui e do que sou
suporte ao peso da herança
da terra que me gerou
e toda a gente tem arcas
mas que não abrem a ninguém
pois não se diz nem se mostra
tudo aquilo que se tem
e só quando o homem velho
for o homem libertado
deixaremos de ter coisas
fechadas a cadeado.
Este poema, da autoria de MOITA MACEDO, dedico-o a todos os que têm a paciência de vir afuroar no meu Arcaz.
A Arca Velha nasceu do carinho que tenho pela minha terra e pela genuinidade das suas gentes, protagonistas destas estórias que fui aprendendo a contar, com a ajuda dos vossos ensinamentos, ao longo destes dois anos passados.
BEM HAJAS VÓS!!!

terça-feira, fevereiro 12

5-2008: Uma cacada na Quaresma


Talvez não já seja muito oportuno, em plena Quaresma, vir remexer nos restos mortais do mafarrico tchocalheiro, morto à meia noite de Terça-Feira-Gorda e enterrado com três pazadas à laia da podoa nas cinzas de Quarta-feira, reconduzidas na pilheirinha dos despejos.
Mas como é para enquadrar a estória deste post, fica escrito...

O período que antecedia esta longa quarentena, nalguns casos iniciado logo a seguir aos Reis, onde um pouco por todo o lado (Toulões, com a Vaca-Galhana a mandar - aqui e aqui - não fugia à regra) era, por natureza, um período de tropelias, provocação e abusos.
Consentindo ou não, cada um dos eleitos pelos Entrudos a ser atchocalhado, zurrado, tchorado ou alvo de umas valentes cacadas à porta de casa, tudo acontecendo a coberto de um anonimato pouco anónimo, com recurso a disfarces urdidos com o que estava à mão de semear ou à escuridão da noite, dependia da carantonha posta pelo visado durante os restantes dias do ano.
Por cá o lema era: "Quem tenha rabos de nagalho, não adormeça ao borralho".
Finda a folia, entra então a Quaresma: sinónimo de abstinência e jejum, de recolhimento e meditação, conceitos impeditivos de toda e qualquer manifestação, acto ou celebração, não condizentes com a o estipulado pelos cânones conciliares.
Estavam proibidos os bailes, os toques desgarrados à guitarra ou à concertina, a solo ou a acompanhar cantares, e até o toque do pífaro dos pastores. Estava também proibido ralhar, praguejar e deitar mau olhado a pessoas e animais.
Qualquer desvio da vereda trilhada por preconceituosos costumes, praticados pela santa ignorância daquelas almas, cujas mentalidades estavam reféns de crendices sobrenaturais e do hermetismo eclesiástico, transformava-se no temor de ser excomungado pela divina providência. Esse temor mantinha o respeito e todos, neste período, homens e mulheres, cumpriam à risca os preceitos estabelecidos.
O seu não cumprimento dava azo a que os santos do altar se revoltassem contra o pecador, condenando-o à lapidação pelo olhar reprovador do povo inteiro.
Pelo menos assim se pensava que era.
Uma vez, aconteceu em Toulões.
A Quaresma chegara, temporoa, com o Inverno ainda sem largar o gabão. O frio intenso que por aqui persistia, traspassando a telha vã das casas pobres, assolava a da ti Maria Cristóva, empontada na correnteza do quarteirão, ao cimo da rua que é hoje a de São José.
Pelas mesmas tchincadeiras que no verão lhe enchiam de zenitais réstias o ambiente sombrio da casa como a querer peneirar o sol, estrelando o chão térreo da habitação, entravam agora arrepiantes correntes de ar que um lume mortiço não conseguia debelar.
Desde que o marido, o ti André, fora levado na paz dos anjos para a Terra da Cadela, nunca mais tivera calor, nem de gente nem decente.
Deitava-se ainda de dia, mal acomodava as quatro pitas que pernoitavam num poleiro improvisado a um canto da casa. A noite passava-a encolhida, esmagada pelo peso de cinco ou seis mantas de arêlos, que nem aqueciam nem arrefeciam, mas moíam o corpo a uma pessoa.
O engenho aguçado da velhota levou-a a arranjar uma alternativa para aquecer os pés durante a noite. Pegou na prática exercida pela ti Mari Pinta, a vizinha, que enchia com água quente uma velha garrafa de porcelana, das da genebra, enfiava-a na manga de uma blusa sem préstimo e colocava-a por debaixo das mantas para temperar a friura da cama.
Aquela botija em grés, cor de terracota, que mais parecia uma pedra reboleira das que correm ribeiro abaixo com as enchentes, deu-lhe a ideia de aquecer um gorrão ao lume para fazer as mesmas vezes.
Aquecida a pedra em cima de umas trempes, com elas a transportou até ao quartelho onde dormia e a colocou, sem adornos, ao fundo da enxerga, cobrindo-a com cautela.
Claro está! Uma pedra praticamente incandescente, apanhando uma enxerga de palha moída, quase isca, é como apichar um rastilho a uma bomba rabia.
A imprevidência da velha Cristova originou que o fogo tomasse imediatamente conta do exíguo aposento.
Nem teve discernimento para abafar a ala com as mantas. A sua única reacção foi salvar a imagem imaculada de nossa senhora de Fátima, que lhe dormia à cabeceira enganando a solidão e zelando pela bênção daquele lar e sair numa pressa desengonçada, limitada pela curvatura da acentuada espandilose que a vergava.
Aos gritos por um Deus-me-acuda, abraçando e apertando a santinha contra o peito, saiu com ela porta fora a clamar por socorro.
Nem foi necessário tocar a rebate. O espírito de entreajuda da vizinhança rapidamente acudiu em peso para, num pronto, afogar a tragédia com cântaros e caldeiros de água.
Feito o rescaldo e remediado o estrago, ao outro dia, chega a Rosa Manjarica da fonte com um asado à cabeça, para ali deixar a água ao que desse e viesse.
Apondo-se a transpor a entrada de casa, embateu com o bocal do asado na tosse da porta e este, desamparadamente, estchabaçou-se em mil cacos na pedra da soleira.
A água, perder-se foi o menos; ao asado é que nem o feitio se lhe aproveitou.
Este descuido não podia ter acontecido em pior altura.
A Lhanor (Leonor) Raspa, rival de estimação da Rosa Manjarica por antigos desaguisados com namoricos, chegava no momento com a burra de arrédea, com dois molhos de lenha nas ingarelas, um dos quais para descarregar à porta da ti Maria. Por caridade ia arranjando uns chamiços à velhota, que já não podia ir por eles, para acender o lume.
Aquele monte de cacos à porta não escapou ao espírito de crítica da Lhanor, sempre à coca de uma oportunidade para largar uma laracha:
- Cónho?! Atão é Curesma e ainda andais a dêter cacadas?
A Rosa, que dias antes perdera o humor por uma tchoradela de Entrudo lhe ter desarranjado o namoro da filha com o Tchico da Garruça, desentendida ou por entender, não quis dar fé do gracejo.
Apesar de andar sempre a bater com a mão no peito e a estender a língua à hóstia, não hesitou em retalhar a conversa. Diziam as más línguas, que a dela era mais afiada que a matadeira do ti Zé Cochinho.
- Nós dêtemos cacadas e tu apanhaste os cacos lá no meio do milho c’ o Tónho Fàdista!
Bem!... Como isto do ralhar e do rezar é só para quem tem vagar, a coisa embalou e prolongou-se.
Cada uma desfiou o seu rosário de impropérios e insultos com que roga pragas ao gado desobediente e a coisa descambou para o lado do ralho desfraldado… e lá vieram os alhos e as cebolas, com rama e tudo.
Um branquear de sacrilégios!
Chegando as duas mulheres a vias de facto, com arranhões, arrepelões e roupa rasgada, interveio a boa-vontade apaziguadora da ti Mari Costóva a tentar apartá-las, exibindo à porta a imagem da virgem de Fátima benzida pelo padre António e rogando em voz alta ao Divino Senhor, que pusesse cobro àquele vilipendiar dos predicados da Quaresma.
Mas o impensável aconteceu!
No calor aceso do lavarinto, um encontrão descontrolado de uma das beligerantes fez com que a velhota deixasse cair a Virgem, indo fazer companhia ao asado escavacado de fresco. Não tinha o palmo e meio de estatueta chegado ao chão, a ti Maria leva as mãos à cabeça, temendo pela justiça divina. Já não bastava o castigo calhado em sorte por lhe ter ardido a casa, ainda teria de sofrer as sevícias infligidas pelo escárnio popular.
O quebrar da venerada imagem gerou um grito de dor e desespero, que congelou a refrega.
Subitamente, o silêncio imperou.
- Abençoada cacada que devolveu a ordem à Quaresma!