
Na pungente pacatez que lancina na quietude das aldeias Raianas, a fazer crer que uma ruralidade dorida, a gravitar suspensa nos ponteiros do tempo, está à espera de melhores dias, eis que, inesperadamente, contrariando a opinião de quem suscita a dificuldade em algo de novo acontecer por aqui, surge uma fulgurante mudança metamórfica.
Originada pela intempérie que fustigou Toulões e toda a região de Idanha-a-Nova numa noite invernosa de há dois anos, estas três fotos atestam as transformações sofridas pela porta da casa, arrancada pelas marcegas, casulo onde viveram uma vida inteira a tia Adosinda e o ti Mné Régio; porta em cuja soleira o valor da honestidade e a honradez foram certa vez elevadas ao seu máximo grau. Uma história que talvez um dia ainda aqui há-de vir a ser contada.
Esta porta, abertura única de ligação da habitação com o mundo, característica tradicional do tipo de construção em algumas zonas do interior beirão, com a funcionalidade de, durante o estio, defender os seus ocupantes das agressivas temperaturas que assolam esta região, tornando-as mais escuras e, consequentemente, mais frescas.
A falta de luminosidade no interior destas casas foi também fonte inspiradora para o velho Eusébio, um alentejano de Alter do Chão que durante alguns anos fez vida como lenhador e corticeiro cá em Toulões, fazendo, nas horas vagas, de poeta e filósofo na taberna.
Estranhando o contraste entre a bracura do reboco afagado das casas do seu Alentejo e o xisto à vista das Beirãs, comparava as nossas casas, sombrias, com a mulher na sua essência, mais ou menos nestes termos:
"Estas casas sem janelas são como as mulheres: todas escuras por dentro. Entrando nelas, deixamos de enxergar, perdemo-nos nos seus meandros e tarda-se em conseguir tornar a ver a claridade do dia."