terça-feira, outubro 17

28-2006: O rei dos matrecos



A televisão faz milagres.
As campanhas publicitárias que nos invadem o quotidiano, entrando-nos, inclusive, todos dias casa adentro sob a forma de tentação, em que tudo nos é apresentado como que a moldar-nos a opinião e a vontade e a forçar-nos a ter um conceito das coisas adequado às pretensões de quem quer vender, de que só nos apercebemos quando já a ilusão nos apanhou desprevenidos.
Neste campo, é de realçar (negativamente do meu ponto de vista de consumidor) a acção dos psicólogos e sociólogos ao serviço do marketing e da publicidade que nos apresentam essas coisas de forma irresistível e quase incontornável.
Isto a propósito da campanha curso que, mercê do spot colocado no pequeno ecrã, parece ter ressuscitado o mais que morto e enterrado jogo dos matraquilhos, desde há anos engolido pelas máquinas de jogos electrónicos que dão cabo da vista e dos nervos à rapaziada mais nova, tornando-a egoísta, fomentando o seu isolamento e a consequente perda do gosto pelo convívio.
Este anúncio trouxe-me á memória os tempos em que com um grupo de amigos fazíamos grandes jogatanas à "roda bota fora", chegando ao ponto de apanhar autênticos suadouros de cavalos de arado.
O jogo dos matraquilhos era um jogo salutar
Jogava-se, ganhava-se, perdia-se, estava sempre tudo bem, porque nisto do ganhar e do perder a diferença estava apenas na cara com que se ficava. E não havia renhonós.
Mas o gosto por este jogo já vinha de trás.
Quando, ainda garotecos, dávamos rodioscas e mais rodioscas para conseguir a milagrosa moeda de 10 tostões que inevitavelmente ia parar ao moedeiro da mesa dos "bonecos" do ti J’quim da Fonte, quando ainda tinha a taberna nos baixos da casa do Tónho Maria e que fazia jorrar uma enchente de abifas de madeira.
Ainda mal chegávamos aos varões. Jogávamos empoleirados em cima de grades de pirolitos para conseguir uma melhor panorâmica do relvado.
Era o nosso promontório.
Os anos foram passando e, em todos, o gosto foi sempre acompanhando, mas havia um elemento que se destacava. O Bombarralito tinha o jogo nas veias.
O tempo passado agarrado aos varões deu-lhe uma habilidade e uma rapidez de movimentos permitindo-lhe fazer fintas que trocavam os olhos aos adversários e causavam espanto na assistência como se de um espectáculo de ilusionismo se tratasse.
Mas fazia outras fintas.
Quando cumprimentava os mais velhos, homens de labuta com quem partilhava a convivência em conversas sobre experiências da vida do dia a dia.
No firme aperto de mão cada um tinha o seu sentir. Sentia-lhes o trabalho reflectido naquela aspereza provocada pelo adoçar da ferramenta e depois sentia-lhes o sentir de quando lhes ouvia da própria boca o inesperado elogio, olhando-lhe para a palma da mão e mostrando-a aos amigos, como fez e disse uma vez o ti "Fanecas":
- Este é que é um estudante com deve ser. Ponde os olhos nestas mãs de cavador!
Mas logo ali se lhe esbarrondava a admiração e se lhe soltava o sorriso, ao saber que aquelas irrisórias calosidades, comparadas com as suas, eram ganhas com o passar do tempo, agarrado às "mãzeiras" dos bonecos.
Quando havia jogos renhidos, a salinha do café novo era um vulcão em erupção. Uma algazarra tremenda que punha tudo em reboliço.
À sala ao lado chegava o desassossego da matraquilhada desconcentrando o ti Valentim e o ti França. Dois esgrimistas em duelo que, sentados frente a frente, defendiam cada qual a sua dama num jogo sem subterfúgios. Ali não havia mandingas.
Nada a esconder, o jogo estava à vista de todos. Inclusive dos mirones que rodeavam os jogadores com um olho nas damas e o outro na mesa do lado, sobre a qual a sueca gerava uma disputa vasa a vasa. Despi-la sim, mas ninguém queria apanhar a chita.
Incomodados, ou um ou o outro, o que estava no momento a perder, gritava a pedir silêncio. E era geralmente à vez.
Quando era o ti Valentim, dizia ele, com a calma que o caracterizava, como se estivesse a falar para si próprio:
- Estes gajos pá, não têm respeito nenhum pá, p’cisavam todos era de um boa mão de ensino pá!
Quando era o ti França, mais ríspido, berrava repetidamente sempre a mesma coisa:
- Pouco barulho, cambada de matchos couceiros. Em vez de estarem aí agarrados aos varões agarrem-se aos varais para ver se amansam.
E às vezes amansavam.
As férias escolares não eram só divertimento.
Para além de ajudar a família nos trabalhos do campo e cooperar com alguns amigos, sempre graciosamente, a malta arranjava uns trabalhinhos para ganhar um cobres que davam um jeitão nas idas às festas das redondezes e para uns gastos extra.
Bem-bonda o esforço que os pais faziam para os trazer a estudar, ainda ter que lhes andar a pedinchar para isto ou para aquilo. Alem do mais, com estes trabalhos fintava-se o ócio evitando a queda na monotonia da espreguiçadeira e, em simultâneo, a fama de parasita com que alguns estudantes eram rotulados.
Esta pelo menos, a ele, passava-lhe ao lado.
O trabalho que mais gostava de fazer era ir à areia ao Aravil.
É verdade que ás vezes era duro, mas dava-lhe gozo porque trabalhava bem o físico. Balançar pasadas de areia do leito do ribeiro cá para fora. Primeiro para um "banco" e depois para a margem e só à terceira é que era carregada para o reboque. Custava.
Mas no final vinha a compensação. A viagem de regresso era meia hora de sesta deitados em cima daquele confortável colchão areia.
Mas houve uma vez em que a coisa piou fino.
Um trabalho habitualmente simples tornou-se num inferno. Um dia inteirinho a amassar barro para fazer "adobres" com uma enxada de cabo rugoso e cheio de escadinas. A coisa mais leve deste trabalho era a palha que se lhe misturava para dar consistência.
Para quem tinha mãos de estudante, como dizia o ti João Páscoa, ao fim de pouco tempo era como pegar num ferro em brasa. No fim do dia tinha as mãos numa lástima.
Nessa noite não houve rei dos matrecos.
As mãozeiras escaldavam-lhe os calos ainda dormentes fazendo-o perder todo o seu fulgor.
Mas o esforço valeu a nota de quinhentos que lhe permitiria ir com os amigos à Zarza fazer a festa do São "Bertlameu".
Davam para pagar a entrada no baile da pista, tomar umas cubatas, comprar um saquinho de terrum para adoçar a boca aos velhotes e ainda sobrava para, já madrugada alta, tomar um cacau quente com um churro antes de iniciar o caminho de regresso, a pé até Salvaterra.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
Bota; deita
bem-bonda; já não basta, já não bastava
cubata; gíria espanhola que significa "cuba-libre"

esbarrondava; de esbarrondar - desmoronar, ruir, demolir
escadinas; pequenas farpas da madeira
mandinga; batota, truque de magia
mão de ensino; correctivo, lição de moral
renhonós; hesitações, meias medidas, queixumes
rodioscas; voltas sobre si mesmo
terrum; do espanhol "turrón"

23 comentários:

eddy disse...

Os matrecos estão, de facto, no imaginário colectivo de todas as infâncias, daí a sua utilização para fins comerciais, é o terrivel capitalismo a funcionar, subverte-se tudo e todos, o que interessa é vender. Quanto à vivência, por momentos viajei pelo quotidiano duma aldeia, bem haja por esta maravilhosa viagem.
Fiquei curioso com o termo "abobre", quer dizer "tijolo"??

um abraço raiano

Anónimo disse...

Gostei tá excelente.

Chanesco disse...

Caro Eddy Nelson
Peço desculpa por tê-lo induzido em erro, mas de facto o que eu queria escrever não era "abobre", mas sim adobre que realmente significa tijolo, adobe.
Também há quem diga "adobro".
Já fiz a correcção no texto.

Saudações Raianas.

bettips disse...

Ao meu amigo raiano que me fez sorrir na noite: a descrição é realíssima, das noites de café e matraquilhos. Claro que aqui as meninas da cidade nem podiam "achegar-se" àquilo, era coisa de rapazolas... E foi um gozo tardio, nas noites de S. João em que havia uma "folguinha" à noite (sim, que nos anos 60 as meninas não saíam à noite) ir com o grupo jogar: mas eu que nunca tive jeito nenhum para bolas e até a jogar ao "mata" perdia...enfim, geralmente não punha a mão no punho mas sim na haste cheia de óleo...assim saía, desconsolada, e nunca ninguém me queria como par! Quanto a trabalhinho, estamos conversados, vejo que tivemos a nossa conta! Um abraço

eddy disse...

ok, estou esclarecido chanesco. Pensei que poderia ser um termo local que desconhecia.

um abraço e bem haja

Anónimo disse...

Oi Chanesco, boto aqui uma beijoca e abraço ***

Jorge P. Guedes disse...

Olá!
Li, com toda a atenção que o texto merece, um conto de extrema acuidade nos tempos que correm, para lá da envolvência do próprio fluxo narrativo e do retrato excelente que nos é dado, nomeadamente do Bombarralito - rei dos matrecos.
Assim se crescia,os miúdos ganhavam a experiência da vida necessária, aprendiam o que era o trabalho, a solidariedade, a responsabilidade, sem nunca perderem o respeito aos mais velhos.
Aprendiam e davam lições de vida e, se entre eles, algum se armasse em Chico Esperto, logo no próprio grupo havia outro mais velho que lhe dava um calduço, devolvendo-o rapidamente à razão e à consciência da sua situação de maçarico.
Outra coisa que me encanta é o linguajar presente nestes textos, enriquecendo-os de um modo que apenas um nativo falante pode compreender, mas tal factor não constitui qualquer impedimento para o leitor, já que o autor generosamente nos coloca à disposição um glossário esclarecedor.

Perante isto, só faltará um ainda maior cuidado na revisão do texto e uma editora que não seja bronca e se compraza em publicar estes excelentes nacos de prosa.
Os meus sinceros parabéns ao autor dos textos.

Um abraço
do Jorge G, Professor e eterno estudante de 53 anos que vive em Lisboa.

Anónimo disse...

Nesta sexta-feira ao som cadente da chuva que embala, visito as páginas que mais aprecio e cuja qualidade sempre me atrai: Parabéns e bom fim-de-semana, pois aqui descanso meus olhos no teu magnífico blogue. Só ficava a perder se não viesse espontaneamente visitar.

a d´almeida nunes disse...

Sem renhonhós nem meios renhonhós aqui está um texto de encher as medidas.
Ai aquelas matraquilhadas que fazíamos ali na Feira de S. Mateus, em Viseu! E os truques que em dada altura ainda chegámos a fazer com umas chapinhas circulares que substituiam as moedas? E as chatices que essa chicoespertice nos trouxe numa célebre ocasião em que tivémos que dar à sola?
Parabéns pela espectacular recolha que está a partilhar com esta malta dos blogues.
Um grande abraço.
António

a d´almeida nunes disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
a d´almeida nunes disse...

A propósito do termo "macanudo", lembra-se "Chanesco"?
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CHANESCO
21/10/2006
Não sei se vai acabar por ler esta minha nota aqui,de qualquer modo penso transcrevê-la no ARCA VELHA.
Essa qestão da expressão macanudo tem, de acto, a ver com os radioamadores, os que promoveram imensas experiências e contribuiram decisivamente para o grande pulo que a tecnologia das comunicações acabou por dar. Esta expressão está em desuso, talvez porque começou ser demasiado generalizada, a meterem-se no mesmo saco os CB´s e os Radioamadores, visto que estas duas actividades não são a mesma coisa.Os operadores da Banda do Cidadão (CB - de Citizen Bad) são, em princípio, pessoas que usam as comunicações rádio nas frequências dos 27 Megaciclos (frequências para uso comercial e de recreio).
Os radioamadores são detentores duma licença, que só lhes é concedida após se sujeitarem a um exame especial feito pela ANACOM (ex-ICP).
Daí, nós, os Radioamadores, fazermos questão em valorizar e convocar em caso de dúvidas e confusões esta diferença.
Só isto...mais nada!
António

Um abraço

Anónimo disse...

Magnífico!
Em Proença tínhamos mesas de "bonecos" no Mné Trolho e na Pantana e também tínhamos o nosso Bombarralito, o Tamóia.
Um abraço.
PS. Obrigado pelo link.

Anónimo disse...

belo texto. Obrigado pelo glosário...no fim. Dá geito! lol

Tozé Franco disse...

MAis um excelente texto.
Parabéns.

MPS disse...

Chanesco encantou-me de novo e lá usou uma expressão que, não sendo a mesma, é muito parecida com outra de igual sentido, mas bragançana: "renhonhó".

Os matraquilhos estavam nas tabernas, lugares que se escrevem no masculino. Apesar disso, a excitação que descreve não me é estranha porque ouvia a algazarra e os comentários da ganapada, em tudo condizentes com o que li aqui.

E é verdade: uma pessoa conhece-se pela mãozada que sabe dar e os trabalhos das férias serviam para nos tornar homens e mulheres a sério.

Um abraço e um muito obrigada por partilhar estes pedaços de vida.

Anónimo disse...

Também quando era miúdo joguei aos matraquilhos, normalmente ficava na baliza. Poucos me batiam com as fintas, só mesmo a "cagadinha"

Anónimo disse...

Passei para desejar bom dia.

Anónimo disse...

A blogosfera é um mundo que partilhamos com objectivos marcados e sólidos, e que nos entra pela casa dentro.Neste blogue entro para a sala como convidado bem recebido e assisto, satisfeito e prazenteiro ao quanto de bom e belo se faz, sobretudo aqui, onde tudo é agradável. Ao despedi-me satisfeito desejo bom fim-de-semana.

Anónimo disse...

Vou deixar desejos de um bom f de semana. beijinho*

AC disse...

Belo texto, necessário texto para perpectuar a verdadeira raís deste povo.

Rosmaninho disse...

Salutar este jogo e muitos outros pois não "turvavam" a visão dos jogadores...:)
Houve um tempo em que o mais que poderia acontecer era as mãos ficarem sujas e calejadas...
Nesse tempo muitas competências eram adquiridas e a principal, parece-me, era o respeito pelo próximo...sem renhonós nem
rodioscas :):):)

~*Um beijo*~

Al Cardoso disse...

Mais um belissimo texto como ja nos habituou.
Gostei da expresao: "Bem-Bonda", fez me lembrar a minha querida da avo, pois ela usava-a frequentemente.

Saudacoes da "Serra"

Jorge P. Guedes disse...

Chanesco, passei para ver se havia algo de novo.

Um abraço para a raia e seu legítimo filho.

Jorge G