Festa de 1986 com a actuação do rancho de Toulões, orientado pelo ti Pedro "Castanho" que, com a colaboração de algumas pessoas, o conseguiu manter vivo durante cerca de dois anos.
Talvez a merecer algum destaque e que, neste aspecto, tornava Toulões diferente das demais aldeias (pelo menos da grande maioria), era o leilão dos "banzos" dos andores e das bandeiras com que se fazia a procissão e cuja receita revertia para ajudar à realização da festa.
Com frequência havia acesos despiques entre os licitadores que, tentando a todo o custo cumprir uma promessa, pagavam o que fosse necessário para manifestar a sua fé e ser parte activa na procissão que percorre as ruas do povo.
Mesmo pagando, as bandeiras e os andores não davam para as encomendas.
"Mudam-se os tempos mudam-se as vontades".
Este costume, certamente por défice de devoção, entrou em desuso em meados da década de 80 e desde então, mesmo sem leilão, com alguma dificuldade se arranjam voluntários que queiram preencher as vagas em aberto e participar na procissão, transportando seja que imagem for.
Noutros tempos não havia conjuntos musicais.
Com esta quarta e derradeira entrada, termina o rescaldo da festa de verão que incidiu essencialmente sobre as suas particularidades pagãs, já que a parte religiosa era, e continua a ser, semelhante a tantas outras.
Talvez a merecer algum destaque e que, neste aspecto, tornava Toulões diferente das demais aldeias (pelo menos da grande maioria), era o leilão dos "banzos" dos andores e das bandeiras com que se fazia a procissão e cuja receita revertia para ajudar à realização da festa.
Com frequência havia acesos despiques entre os licitadores que, tentando a todo o custo cumprir uma promessa, pagavam o que fosse necessário para manifestar a sua fé e ser parte activa na procissão que percorre as ruas do povo.
Mesmo pagando, as bandeiras e os andores não davam para as encomendas.
"Mudam-se os tempos mudam-se as vontades".
Este costume, certamente por défice de devoção, entrou em desuso em meados da década de 80 e desde então, mesmo sem leilão, com alguma dificuldade se arranjam voluntários que queiram preencher as vagas em aberto e participar na procissão, transportando seja que imagem for.
Bom, mas vamos ao arraial.
Noutros tempos não havia conjuntos musicais.
Os arraiais eram abrilhantados pela aparelhagem e por tocadores de acordeão, os "cordionistas".
O homem da aparelhagem foi durante anos o senhor Silva de Tinalhas.
Já era considerado um homem da terra pela simpatia e pela seriedade com que lidava com todos, assim como pelo empenho que punha no seu profissionalismo.
Chegava com sua camioneta, ia cumprimentar os festeiros e com os dois altifalantes amarrados no tejadilho, que mais pareciam clarins a anunciar a boa nova, em dose dupla, ia dar a volta pelas ruas para avisar da sua chegada.
Era um primeiro exalar de cheiro a festa.
Toda a canalha, numa agitação provocada pelo nervosismo da impaciência, ia aderrabo daquela charanga ambulante. Os festeiros, também a acompanhar, lá iam para uma última ronda relembrar aos retardatários da quase obrigatoriedade de pagar para a festa, contribuindo na ajuda à sua realização.
E dos esquecidos, ou que se faziam, não rezava a "listra" dos beneméritos, da qual, era quase certo, a menos que houvesse voluntários, de entre os poucos inconstantes, três eram nomeados festeiros para o ano seguinte.
E desonra lhes cairia sobre o nome se se negassem!
Entrementes, o adro era enfeitado com arcos floridos, com serpentinas e com "fitas" que as raparigas briosa e dedicadamente faziam com tiras de papel de todas as cores coladas numa guita. Fazendo lembrar as velhinhas dobadouras do linho, iam sendo enroladas em volta de uma cesta para evitar emaranhos e seguidamente suspensas de um lado para o outro da rua, unindo as casas pelos beirados, como que a querer remendar a ralação entre as famílias, por vezes desavindas.
A festa também apelava à união.
O homem da aparelhagem foi durante anos o senhor Silva de Tinalhas.
Já era considerado um homem da terra pela simpatia e pela seriedade com que lidava com todos, assim como pelo empenho que punha no seu profissionalismo.
Chegava com sua camioneta, ia cumprimentar os festeiros e com os dois altifalantes amarrados no tejadilho, que mais pareciam clarins a anunciar a boa nova, em dose dupla, ia dar a volta pelas ruas para avisar da sua chegada.
Era um primeiro exalar de cheiro a festa.
Toda a canalha, numa agitação provocada pelo nervosismo da impaciência, ia aderrabo daquela charanga ambulante. Os festeiros, também a acompanhar, lá iam para uma última ronda relembrar aos retardatários da quase obrigatoriedade de pagar para a festa, contribuindo na ajuda à sua realização.
E dos esquecidos, ou que se faziam, não rezava a "listra" dos beneméritos, da qual, era quase certo, a menos que houvesse voluntários, de entre os poucos inconstantes, três eram nomeados festeiros para o ano seguinte.
E desonra lhes cairia sobre o nome se se negassem!
Entrementes, o adro era enfeitado com arcos floridos, com serpentinas e com "fitas" que as raparigas briosa e dedicadamente faziam com tiras de papel de todas as cores coladas numa guita. Fazendo lembrar as velhinhas dobadouras do linho, iam sendo enroladas em volta de uma cesta para evitar emaranhos e seguidamente suspensas de um lado para o outro da rua, unindo as casas pelos beirados, como que a querer remendar a ralação entre as famílias, por vezes desavindas.
A festa também apelava à união.
"Estendiam-se as luzes". Gambiarras com dezenas de lâmpadas, cruzavam-se com os restantes enfeites, mas só produzindo o seu efeito depois de cair a noite.
Era como se o céu estrelado estivesse mesmo ali ao alcance da nossa mão.
Era como se o céu estrelado estivesse mesmo ali ao alcance da nossa mão.
Nesse tempo ainda a iluminação eléctrica, que desconfiadamente embisgava o olho à tecnologia luminotécnica, e se via negra para rasgar a escuridão, não tinha chegado a Toulões.
As ruas eram alumiadas apenas nas noites de luar.
A luz que brilhava no arraial, era produzida por um gerador que ficava até de madrugada, de castigo, a gemer atrás da igreja.
As ruas eram alumiadas apenas nas noites de luar.
A luz que brilhava no arraial, era produzida por um gerador que ficava até de madrugada, de castigo, a gemer atrás da igreja.
Ideias iluminadas de galfarrotes.
Uma vez o Zé Fô, que tinha a fama de um malino e a curiosidade de um engenhoso, abrigado pelo lusco-fusco que o escondia do frenesim do adro, lembrou-se de verter águas sobre o escape do motor-gerador, para ver o efeito da lufada de vapor que aquilo fazia.
Apanhado à falsa-fé por um encosto do colega do lado, um movimento mais desajeitado obrigou-o a direccionar o jorro sobre o cachimbo da vela de ignição. Para além do esticão que apanhou na "betchola", abafou o pavio, deixando o arraial às escuras e os dançarinos a inventariar as constelações.
Para quem namoriscava pela surra era a oportunidade para fazer brilhar a sua estrela.
O burburinho do costume.
O que é que foi, o que é que não foi?
O desinquieto do Zé, que era d’ orêlo, desabelhou logo dali para fora com os amigos, deixando a responsabilidade ao abandono. É que ser apanhado pela patrulha dava, no momento, sete e quinhentos de coima por ter urinado na via pública e ao chegar a casa ainda ganhava uma valente orelhada do pai para recuperar o prejuízo.
Aqui a autoridade era imposta, era mantida e, sobretudo, era respeitada.
Uma vez o Zé Fô, que tinha a fama de um malino e a curiosidade de um engenhoso, abrigado pelo lusco-fusco que o escondia do frenesim do adro, lembrou-se de verter águas sobre o escape do motor-gerador, para ver o efeito da lufada de vapor que aquilo fazia.
Apanhado à falsa-fé por um encosto do colega do lado, um movimento mais desajeitado obrigou-o a direccionar o jorro sobre o cachimbo da vela de ignição. Para além do esticão que apanhou na "betchola", abafou o pavio, deixando o arraial às escuras e os dançarinos a inventariar as constelações.
Para quem namoriscava pela surra era a oportunidade para fazer brilhar a sua estrela.
O burburinho do costume.
O que é que foi, o que é que não foi?
O desinquieto do Zé, que era d’ orêlo, desabelhou logo dali para fora com os amigos, deixando a responsabilidade ao abandono. É que ser apanhado pela patrulha dava, no momento, sete e quinhentos de coima por ter urinado na via pública e ao chegar a casa ainda ganhava uma valente orelhada do pai para recuperar o prejuízo.
Aqui a autoridade era imposta, era mantida e, sobretudo, era respeitada.
Pouco depois foi o regresso à normalidade.
Siga a dança qu’o tocador é homa (homem) de confiança!
O tocador era quase sempre o do ano anterior. O Sr. Alziro da Orca ou um do Salgueiro do Campo, cujo nome, perdoem-me, se me varreu da memória (um homem também não se pode alembrar de tudo).
Ambos eram bons. Fosse qual deles fosse, sacava do repertório de êxitos da Eugénia Lima, do Filipe de Brito ou outros bem populares que guardavam no ouvido e que, com uma destreza estonteante, lhe saíam pelas pontas dedos, punham uma multidão a contribuir para prosperidade dos filhos dos "Sapateiros" cá da terra.
Quando o tocador descansava, entravava a aparelhagem. Para além de outras sanfonadas, dançava-se ao som dos discos da Maria Albertina ou do António Mafra, que naquela altura punha meio Portugal à espera do "carteiro da 9 para as 10".
Enquanto um povo esperava, outro desesperava.
No arraial, só música nacional. Esporadicamente se ouviam estrangeiradas.
Música inconveniente, para o status vigente, ouvia-se recatadamente lá por Lisboa por mancebos que gostavam dos Beatles e dos Rolling Stones e que, tal como o rapaz americano de canção da Joane Baez, viviam descontentes com o nosso Vietnam.
Aqui, apenas o Josélito, "El ruiseñor"(rouxinol) da voz de ouro, tinha cabimento. Importado de aqui ao lado e bem aceite por via da empatia transfronteiriça, começava a comover multidões com aquela voz de menino que era, enaltecendo a beleza natural "da Campanera":
Siga a dança qu’o tocador é homa (homem) de confiança!
O tocador era quase sempre o do ano anterior. O Sr. Alziro da Orca ou um do Salgueiro do Campo, cujo nome, perdoem-me, se me varreu da memória (um homem também não se pode alembrar de tudo).
Ambos eram bons. Fosse qual deles fosse, sacava do repertório de êxitos da Eugénia Lima, do Filipe de Brito ou outros bem populares que guardavam no ouvido e que, com uma destreza estonteante, lhe saíam pelas pontas dedos, punham uma multidão a contribuir para prosperidade dos filhos dos "Sapateiros" cá da terra.
Quando o tocador descansava, entravava a aparelhagem. Para além de outras sanfonadas, dançava-se ao som dos discos da Maria Albertina ou do António Mafra, que naquela altura punha meio Portugal à espera do "carteiro da 9 para as 10".
Enquanto um povo esperava, outro desesperava.
No arraial, só música nacional. Esporadicamente se ouviam estrangeiradas.
Música inconveniente, para o status vigente, ouvia-se recatadamente lá por Lisboa por mancebos que gostavam dos Beatles e dos Rolling Stones e que, tal como o rapaz americano de canção da Joane Baez, viviam descontentes com o nosso Vietnam.
Aqui, apenas o Josélito, "El ruiseñor"(rouxinol) da voz de ouro, tinha cabimento. Importado de aqui ao lado e bem aceite por via da empatia transfronteiriça, começava a comover multidões com aquela voz de menino que era, enaltecendo a beleza natural "da Campanera":
"Porque te han pintao las ojeras, flor del lírio real?"
A dada altura, instruído por um dos festeiros lá vinha o sempre prestável Tónho "Santoantónho", com o regador de lata apagar a poeira do terreiro. Interrompendo a dança, de propósito ou não, regava de caminho a planta dos pés dos bailarinos.
Era o momento para respirar fundo e ganhar novo fôlego porque este era também o sinal de que o balho ia atingir o seu auge.
Se para o nosso povo não havia festa sem foguetes, para os Toulonenses também não havia festa sem fandango.
A pedido, o tocador lá ensaiava os primeiros acordes, que depois de encarrilar era coisa para durar "até vir a abó da missa".
Toda a gente o balhava até à exaustão e às vezes mais que uma vez durante a noite. A alameda de pares em que se entrava e saía sem interromper a cadência, por vezes extravazava para além dos limites do recinto.
Era o momento para respirar fundo e ganhar novo fôlego porque este era também o sinal de que o balho ia atingir o seu auge.
Se para o nosso povo não havia festa sem foguetes, para os Toulonenses também não havia festa sem fandango.
A pedido, o tocador lá ensaiava os primeiros acordes, que depois de encarrilar era coisa para durar "até vir a abó da missa".
Toda a gente o balhava até à exaustão e às vezes mais que uma vez durante a noite. A alameda de pares em que se entrava e saía sem interromper a cadência, por vezes extravazava para além dos limites do recinto.
A circunferência de cadeiras em que descansavam as mulheres mais velhas que vinham acompanhar as filhas e algumas quadrilheiras que rodeavam o adro, era obrigada a abrir alas e dar espaço aos foliões numa alegria contagiante.
Muitos faziam gala em mostrar as suas aptidões de fandangueiro, demonstrando que a coisa era levada a sério.
O fandango tornou-se aqui tradição e ai do tocador que não o soubesse tocar. Era esfandangado sem dó nem piedade.
Estranha-se que uma dança originária de uma região ainda distante como é o Ribatejo, tivesse sido adoptada pelas gentes de Toulões com tão grande entusiasmo.
A razão, sem certeza absoluta, deve-se, num tempo em que o trabalho por aqui não chegava para todos, às campanhas da monda e da ceifa que alguns faziam por terras de gaibéus e de campinos, onde já estava enraizada e já era considerada dos grandes elementos do folclore e da cultura popular do nosso país.
Muitos faziam gala em mostrar as suas aptidões de fandangueiro, demonstrando que a coisa era levada a sério.
O fandango tornou-se aqui tradição e ai do tocador que não o soubesse tocar. Era esfandangado sem dó nem piedade.
Estranha-se que uma dança originária de uma região ainda distante como é o Ribatejo, tivesse sido adoptada pelas gentes de Toulões com tão grande entusiasmo.
A razão, sem certeza absoluta, deve-se, num tempo em que o trabalho por aqui não chegava para todos, às campanhas da monda e da ceifa que alguns faziam por terras de gaibéus e de campinos, onde já estava enraizada e já era considerada dos grandes elementos do folclore e da cultura popular do nosso país.
Terminados os festejos era tempo de regressar ao trabalho e retomar o ritmo habitual.
Todo o aparato do arraial fora desmontado. Apenas as fitas colocadas pelas raparigas, ainda ali permaneciam quase até à autodestruição, como que querer perpetuar a festa, evitando a sua queda no precipício do esquecimento.
As guitas, agora despidas dos enfeites, eram agora ponto de encontro das andorinhas que, com a chegada do Outono, ali se reagrupavam e ganhavam alento para continuar o ciclo migratório, levando consigo definitivamente a alegria da festa que era trazida de volta no início de cada Primavera.
Todo o aparato do arraial fora desmontado. Apenas as fitas colocadas pelas raparigas, ainda ali permaneciam quase até à autodestruição, como que querer perpetuar a festa, evitando a sua queda no precipício do esquecimento.
As guitas, agora despidas dos enfeites, eram agora ponto de encontro das andorinhas que, com a chegada do Outono, ali se reagrupavam e ganhavam alento para continuar o ciclo migratório, levando consigo definitivamente a alegria da festa que era trazida de volta no início de cada Primavera.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
aderrabo (ir ou andar a); perseguir, andar atrás de
balho – balhava; baile - bailava
betchola; pilinha
orêlo (ser de ou ter); ser expedito, perspicaz, manhoso, desenrascado
embisgava; de embisgar – piscar olho ou franzir o sobrolho
esfandangado; de esfandangar – despedaçar, esfarrapar, destruir
à falsa-fé; à traição, ser enganado, premeditadamente
galfarrote; rapaz buliçoso
malino; velhaco, mal intencionado, malicioso
quadrilheiras; alcoviteiras
sanfonadas; de sanfona – harmónio, concertina
aderrabo (ir ou andar a); perseguir, andar atrás de
balho – balhava; baile - bailava
betchola; pilinha
orêlo (ser de ou ter); ser expedito, perspicaz, manhoso, desenrascado
embisgava; de embisgar – piscar olho ou franzir o sobrolho
esfandangado; de esfandangar – despedaçar, esfarrapar, destruir
à falsa-fé; à traição, ser enganado, premeditadamente
galfarrote; rapaz buliçoso
malino; velhaco, mal intencionado, malicioso
quadrilheiras; alcoviteiras
sanfonadas; de sanfona – harmónio, concertina