terça-feira, dezembro 11

23-2007: O Madeiro do Natal


Na quadra natalícia, por estas terras da raia perdida cujas tradições valorizam o nosso legado cultural, "aldeia sem madeiro no adro é como um presépio sem menino Jesus".
Era neste pressuposto que todos os anos na noite de 7 e no dia 8 de Dezembro, os habilitados a mancebos viviam uma azáfama de formigueiro para fazer chegar ao adro o maior tronco de azinheiro que houvesse no montado.
Era previamente escolhido e solicitado ao seu proprietário que, também por uma questão honra, orgulho e muitas vezes uma ponta de vaidade, raramente se negava à oferta.
Era uma noite de trabalho. Com os enxadões e o garrafão a serem elementos preponderantes nesta tarefa, até chegar a hora de, com um calabre engalhado nos ramos, por o azinheiro de cambecas, não havia descanso.
Só então era feito um intervalo para retemperar e recuperar do esforço, em redor do enorme lazarete, com umas presas assadas directamente em cima das brazas, ou na ponta de um espeto improvisado no momento.
E se os enxadões, esses, eram postos em descanso, o garrafão continuava activo e a cumprir o seu papel de não deixar arrefecer os ânimos. É que por esta altura do ano já um barbeiro sem navalha se apronta a escanhoar rente a penugem a estes imberbes de rosto desprotegido.
Só ao romper do dia se regressava ao trabalho para o madeiro ser carregado e transportado até ao adro da Igreja.



Com uma paragem técnica à entrada do povo, para as raparigas (noivas ou faladas) emprestarem os seus lenços mais garridos aos rapazes, que os atavam ao tronco, cruzando o peito. Enfeitava-se a canga e os cornos das vacas com laranjas (desde há uns anos utilizam-se tractores) e cobriam-se ramos de azinheiro, trazidos para o efeito, com colchas floreadas, sendo depois erguidos como estandartes enquanto a carrada dava a volta pelas ruas do povo e, por entre enfeites, toques de concertina e cantares ao Menino Jesus, davam-se vivas ao Madeiro:
"Viva o Madeiro do Natal e a junta do t’ João Bombarral"
"Viva a malta do Madeiro e o carro do t’ Zé Monteiro"
"Viva o tocador"
"Viva o garrafão"
"Viva o Madeiro, que ainda está inteiro".

Mas em Toulões esta tradição já não é o que era.
Por mor do despovoamento agravado dia a dia e pela consequente falta de cachopada, desde há uns anos que o Madeiro vem sendo arrancado pelos homens residentes, sempre com a ameaça de a tradição um dia acabar de vez.
Nesta eminência, e alterando radicalmente a tradição, antecipando-se mesmo à intenção do governo em tornar o recenseamento militar extensivo às raparigas, foi a filha da Natércia, que sem quintos, organizou sozinha o arranque do madeiro de há dois ou três anos, por ter sido a única criança nascida em Toulões, a atingir a idade de ir às sortes.
E a ameaça cumpriu-se! Neste Natal não houve Madeiro em Toulões.
Nas vésperas da noite do caramelo, adaptando as tradições antigas aos tempos modernos, graças à facilidade em agora se poder dispor de maquinaria pesada, na urgência lá se arranjou um azinheiro e uma sobreira velha, conseguindo garantir-se o calor necessário para aquecer o Menino na noite da consoada e também, diga-se, para não deixar a aldeia em pouco (é que com isto das rivalidades entre aldeias era importante manter a dignidade).
Apesar deste esforço de última hora, o Madeiro propriamente dito, com todo o simbolismo do ritual do arranque daquele tronco, que ditava a passagem à idade adulta de todos os jovens incumbidos de o colocar no adro, nunca podendo ter um perímetro inferior ao medido pela bitola de duas braçadas de homem, esse, ficou no montado.
Sem gente a nascer nas aldeias, vão-se as tradições.
Foi pertinente a preocupação manifestada por Sua Excelência o Presidente da República para com a baixa taxa de natalidade por estas bandas, numa recente visita oficial que fez pelo vizinho distrito da Guarda.
Mas sabendo que a imensidão da vontade dos políticos é proporcional à imensidão de votos que os possam eleger, é certo e sabido que não há vontade que aqui chegue para por cá fixar as pessoas.
Carlos Drummond de Andrade, numa passagem do seu poema "Reverência ao destino…", dizia
:
… FÁCIL, é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação
DIFÍCIL é vivenciar esta situação e saber o que fazer. Ou ter coragem para fazer ….

Valha-nos o Natal para todos os anos, por aqui, irmos podendo assistir à alegria que é o nascimento de uma criança, mesmo se o feliz acontecimento ocorre numa manjedoura em vez de numa ambulância dos bombeiros a caminho da maternidade.
A breve trecho, iremos ter o adro de Toulões vazio de Madeiro e até, sabe-se lá, o presépio sem Menino Jesus.

Nota:
Se em Toulões e outras aldeias raianas a tendência é para que a tradição se extinga, outras terras há em que ela parece estar cada vez mais enraizada.

Veja-se o caso de Penamacor onde todos os anos o madeiro é sempre maior que o do ano anterior(a foto é do Natal de 2006, 2 dias depois de ter sido ateado), chegando a roçar o exagero e a apregoar-se ser este o maior Madeiro do país.(ver aqui o madeiro de 2007).
Tradição à parte, o que parece ganhar-se em grandiosidade e ostentação, parece perde-se em convicção pelos valores do Natal.

Já em Proença-a-Velha, uma vizinha aldeia do concelho de Idanha-a-Nova, são mais comedidos. O Madeiro é mais pequeno, mas toda a população colabora e se empenha para manter bem viva a sua tradição, tornando este evento uma atracção, tanto para os da terra como para forasteiros.

A prová-lo está este livro da autoria de João Mugeiro e João Adolfo Geraldes, editado pela Magno Edições e pela Proençal (ver link ao lado - Proença-a-velha), onde é feita uma excelente descrição dos rituais do Madeiro ao longo dos tempos e em que cerca de metade desse livro está ilustrado com fotografias da autoria de Marcin Górski, tiradas à guisa de reportagem ao Madeiro de 2005.

Essas fotografias foram mostradas numa exposição que esteve patente no Núcleo Museológico do Lagar de Azeite, em Proença-a-Velha, no Natal de 2006, e que tive a oportunidade de visitar.
Actualmente podem ainda ser vistas aqui (http://www.pontosdevista.net/expoi.php?id=247)

6 comentários:

Tozé Franco disse...

O meu primeiro contacto com o Madeiro aconteceu por maus motivos: o velório de um familiar numa pequena aldeia do concelho de Carregal do Sal já faz alguns anos. Verdade se diga que se não fosse o Madeiro tínhamos morrido de frio, pois a noite estava gelada.
É uma pena que as tradições se vão perdendo e que os próprios responsáveis dêem também o seu contributo. Veja-se o que se está a preparar para o nome das escolas e ter-se-á uma ideia.
Para terminar quero expressar o meu contentamento pelo seu regresso a estas lides. Já estávamos com saudades.
Um abraço.

MPS disse...

O meu amigo chega assim de mansinho, com pezinhos de lã e caminhar de gato, e eu quase não dava por ela!

Feliz regresso!

A fotografia inicial é lindíssima!

O seu texto, mais uma vez, vem eivado de sentimento. Desta vez, infelizmente, é o sentimento da perda que, a mim, já me atravessa a garganta há muito tempo.

Quanto ao discurso do Senhor Presidente da República, olhe... se bem me lembro, datam do tempo dele as primeiras desactivações das linhas de caminho de ferro. As do interior, claro! Espero que o discurso seja de arrependimento, embora me não parecesse.

Os "Ecos da Morracha" dão muito jeito! Parabéns por mais esse enorme trabalho. Sei bem quanto custa.

Cá por mim despeço-me com um abraço da Moita de Marganiço

eddy disse...

Caro Chanesco,

É terrivel toda a conjuntura relacionada com o envelhecimento progressivo do concelho. Nas minhas inúmeras deslocações através deste tão vasto território raiano, tenho constatado in situ toda a desolação que muitas aldeias vivem. Enfim, trata-se de um problema quase à escala global. É urgente que se pensem estrategias conjuntas com outros territórios vincados pelos mesmos problemas.



Um abraço e um bom ano 2008

Joaquim Baptista disse...

Bem aparecido seja.

Abraço

Joaquim

P. S.: Palavras para quê...!

vieira calado disse...

Quando vou passar o Natal, na Guarda (e vou há 15 anos), nunca perco o madeiro.
As boas tradições são para manter.
Um abraço.

a d´almeida nunes disse...

Já estou como diz o nosso amigo mps, vem de mansinho e nem dei por nada.
Venho agora mesmo do "dispersamente" e tenho que dar o dito por não dito. Afinal eu é que já aqui não vinha há 15 dias.
Estive num casamento duma sobrinha minha, este verão que passou e lá estava aquele madeiro, enorme, que até me fez admiração.
Mas tem o meu amigo toda a razão. Tradiçao de lugar sem crianças não tem futuro, obviamente. E as coisas estão mesmo para continuar com a vida tão cara e tão complicada que hoje levamos quem é que se atreve a fazer filhos? Temos um problema bicudo pela frente. Para resolver!...não para declarações de intenção e pronto!
Um abraço, Chanesco. BOM 2008.
António