quinta-feira, novembro 5

Tradição

Tenho em mim que aquilo a que chamamos tradição, elemento aglutinador de vontades e empatias entre defensores activos dos nossos usos e costumes, das nossas memórias e outros valores identitários da nossa cultura, que vão sendo deixados em testamento à geração seguinte, já não é o que era.
Com o passar do tempo, tudo muda.
Até a tradição, elemento de ajuda à projecção do futuro, por estes dias invocada em vão pelos pretendentes ao “trono” parlamentar, incluindo os que consideram a preservação das tradições um acto retrógrado, já serve de argumento político para disputas partidárias. A provar que a tradição se define pela espontaneidade genuína do povo, os seus eleitos no Parlamento organizaram, para animar as hostes, já para dia 10, um magusto de São Martinho a ter lugar na casa da democracia. Não faltará certamente o jogo do pau e a não menos tradicional castanhada: não há nada como servir uma moção de rejeição ao governo, recheada de umas punhadas do bom fruto da Terra Fria e generosamente regada com água-pé, cuvée reserva especial, estagiada em fundelho de pipa de quatro almudes (mordomias).
E para resto de festa, como também pede a tradição, lá estarão os cantares ao desafio e o bailarico saloio, com despique entre bailarinos do governo e da oposição, ambos com o vezo do passa-culpas, a ver quem se livra do ridículo de ficar a dançar com a vassoura.

Bom, mas deixemos os tradicionalismos politiqueiros.
Por estes dias a tradição foi outra: o Halloween, ou Dia das Bruxas, que na noite de Sábado passado, aproveitando a minha ausência, se fez cumprir com artes de pasteleiro francês, enfeitando-me a porta com farinha para brioche.
De origem celta, pelo que consta, adoptada pelos países anglófonos e fortemente arreigado lá pelos States, chegou a Portugal há alguns anos, importada ao abrigo do acordo comercial para a chinesice com a promessa de fortalecimento da economia resultante do depauperado tecido produtivo português. Paradoxalmente escolheu dia 31 de Outubro, Dia Mundial da Poupança, para assentar arraiais com o sentido primeiro de rapinar a carteira aos aderentes mais modernistas, foliões de um carnaval antecipado, e aos pais da garotada que agora nas escolas é instada a aderir a esta pretensa tradição, colocando nela mais empenho que no acto subversivo e pouco patriótico de aprender a trautear o Hino Nacional. A miudagem, enfeitada a preceito com adereços horripilantes, calcorreia de porta em porta num peditório com finalidade plausível: “Doçura ou travessura”?
Em Toulões, o peculiar peditório cerimonial do Dia de Todos os Santos, “Pedir a Bica”, semelhante ao de algumas terras do concelho de Idanha, e limítrofes, em que é designado por "Santóro", ou "Pedir o Santóro", está praticamente resoluto. Não por influência do Halloween, também a tentar sem grande sucesso alastrar ao recôndito beirão, nem pela abolição do feriado de 1 de Novembro, mas pela acentuada desertificação do interior que acabou com a canalha (gaiatada).
O “Pedir a Bica” levava os afilhados (quando ainda os havia) a receber a bênção dos padrinhos. Entrava-se, dava-se solenemente a salvação e recebia-se a benzedura ministrada pela madrinha. Largava-se um bem-haja murmurado e recolhia-se o ofertório: um sarrão sortido com fruta da época (marguédas (romãs), marmelos, dióspiros), umas passas de figo cuidadosamente capadas e enfarinhadas, tudo a acompanhar a gulosa bica de azeite, feita em observância com o tradicional evento. E sortudos eram os que, a acrescentar ao rol, se viam prendados com duas ou três coroas, invariavelmente destinadas a investir no mágico despoletar do berlinde no gargalo do pirolito.
Aos mais velhos, pouco dados a modernices, o globalista Dia das Bruxas nada diz. No entanto, guardam na memória a imagem de um elemento que caracteriza este novo costume invasor: a botelha (abóbora) rectro-iluminada, que dantes aparecia à noite nas encruzilhadas, com origem sabe-se lá de onde, para afugentar a má-hora. Por certo, bem útil seria no próximo dia 10 para cumprir a ambivalente função de servir de assador de castanhas e proteger o povo dos maus presságios.

2 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

Saborosa ironia, este seu escrito.

Pelas bandas de Lisboa havia a tradição do "Pão por Deus", nascida com o terramoto, essa sim, devorada pelas patacoadas das abóboras e das bruxas, que nada nos dizem e nada evocam que nos seja familiar. Só abro a porta a esses e é com alegria que dou o óbolo às poucas crianças que têm a sorte de pertencer a famílias que lhes transmitem aquilo que é nosso.

Um grande abraço

Chanesco disse...

Fátima

O Santóro é uma espécie de bôla (nalguns sítios em forma de ferradura) feita com massa de pão e untada com uma fina camada de azeite.
Em Toulões é uma “bica”: espécie de bolacha com cerca de 2 cm de espessura, com um ou dois palmos de comprimento por uma mão de travessa de largo, feita elo mesmo processo, mas picada por cima com um garfo). As picadas com um garfo, para além de permitirem a penetração do azeite na massa, tem uma função decorativa, mas também serviam de marca para serem distinguidas das doutras mulheres que coziam na mesma fornada.
Ás vezes, quando uma madrinha tinha muitos afilhados, as marcas eram as inicias do nome de cada um para personalizar a bica que seria ofertada no Dia dos Santos.
Abraço