quinta-feira, abril 20

10-2006: Rivalidades do São Domingos

Capela de São Domingos ao entardecer (1982)
No primeiro domingo depois da Páscoa, domingo de Pascoela, a Zebreira festeja o São Domingos.
A parte religiosa da festa realiza-se ali no Carvalão, numa ermida construída junto à ribeira da Toulica, num lugar bastante aprasível, mais ou menos a um quarto das duas léguas que separam Toulões da então sede de freguesia.
A razão da ermida estar naquele local, parecia, até há bem poucos anos, ser ainda um assunto mal resolvido entre os da Zebreira e os do Rosmaninhal. Ao que parece, ambos os lados rivalizavam na disputa pelo direito à posse do santo, que, por obra de uma espécie de sentença salomónica, mais valeu atribuir a imagem à Zebreira do que dividi-la ao meio. Deste modo, os zebreirenhos abandonaram a capelinha que albergava o santo, na fronteira com o termo do Rosmanhinal, para construírem esta, precisamente do lado oposto do seu termo, talvez para evitar retaliações.
Quando as palavras desertificação e despovoamento ainda não tinham significado, esta romaria, juntava todos os anos uma caterva de gente, principalmente oriunda destas duas povoações. Em dia de romagem parecia que parira ali a galega.
Dada a proximidade, de burro ou a pé, a população de Toulões deslocava-se em peso ao São Domingos, um pouco ainda a fazer o rescaldo da Páscoa, ou talvez já a ensaiar os preparativos para a Senhora do Almortão que se celebra oito dias depois.
Para além das celebrações religiosas era costume, por assim dizer, aferir as rivalidades entre os homens das duas aldeias que aí se deslocavam, e que, logo à chegada se iam penitenciar, primeiro ao balcão e só depois ao altar do padroeiro. Sempre se ganhava um pouco mais de coragem para enfrentar os desafios.
Entre dois pichorros de vinho, lá vinha o jogo da rêlha ou o jogo da malha. Por vezes era também o jogo do pau, sendo este mais usual nas feiras de gado, que frequentemente era motivado por desentendimentos que misturavam copos com negócios
Mas o jogo rei destes festejos era o da barra. Este jogo de força e destreza dava alguma fama ao valentão, geralmente bastante apregoado pelas redondezas.
O ti João Pequeno, homem já entrado nos quarenta, e o Ti Henriques, um pouco mais novo, eram dois desses valentões que não deixavam créditos por mãos alheias.
Era vê-los pegar naquela pedra de 20 ou 30 quilos , geralmente roubada à parede de uma tapada, que subia braço acima, e, depois de um balanço à laia de lançamento do disco olímpico, mas sem mexer os pés do chão, catapulta-la três ou quatro metros lá para diante. Alguns bem gemiam, e até por vezes rasgavam pana, ao esforçarem-se para arremessar a pedra o mais à frente possível, muitos não chegando a ultrapassar metade dessa distância. Não havia pai para estes dois exímios lançadores que ficavam sempre a despicar ao centímetro quem seria o vencedor, deixando os da Zebreira de rabo alçado.
Estes, como tinham cinco ou seis rapazes que davam uns toques na bola, com equipamento a rigor e chuteiras de travessas, trouxeram uma de "catxu" (novidade para a época) e desafiaram os habituais rivais, sabendo-os pouco dotados para o jogo da pilota.
Os dos Toulões, também não querendo dar a parte fraca, reconhecendo estarem em desvantagem, não se impressionaram com todo aquele aparato e aceitaram o repto. Espontaneamente, entre os solteiros e os casados presentes, lá reuniram onze jogadores. Não havendo equipamento, e com receio de estragarem o fato domingueiro, o único, naquela altura, que servia para todas as ocasiões festivas, a saída foi esquecer todos os tabus da época e toca a alinhar em ceroulas em defesa da sua honra e da sua terra.
Escolheu-se uma beirada que estava de pousio, mesmo ali junto ao recinto da festa, desviaram-se alguns burros que lá pastavam, e espetaram-se quatro estacas, aparelhadas no local, para fazer as balizas. Não havia marcações. Os limites do campo eram só entre as duas linhas de baliza, reguladas pelo alinhamento das estacas. As linhas de fora eram os cômaros formados pelas lindes que limitavam aquele terreno e também não foi por causa de dois ou três azinheiros, especados no meio do campo a assistir ao jogo, que este deixou de se realizar.
Deu-se início ao desafio. A bola saltitava sem nexo, apalpando todos os torrões que se escondiam por baixo daquele manto de margaça e pipílros.
Futebol, era coisa que poucos conheciam. Técnica e regras de jogo, só mesmo os que tivessem ido à tropa. Era ver aqueles jogadores de ocasião, alguns descalços, dar carreiras com as partes baixas dependuradas, a saírem pela portinhola das trusses, na ânsia de dar um pontapé na pilota que não estava lá muito pelos ajustes. Conseguir tocar-lhe já era um triunfo. Onde estava a bola, lá estava um adjunto de jogadores.
Era quase como nos rebanhos:
- Para onde vai uma ovelha vão as outras todas.
O jogo estava animado. Mais para o lado dos Zebreirenhos que chegaram a estar a vencer por larga vantagem.
Na assistência, as hostes, que se manifestavam-se ruidosamente, esquecendo por completo a algazarra de um propagandista, vendedor de banha da cobra, que quase todos anos atabafava o bicho do ouvido a meia dúzia de romeiros, com aquele cone falante mais roufenho que o sino rachado da igreja velha.
Os dos Toulões já andavam um pouco desorientados. A cada golo sofrido mudava o guarda-redes. Os quatro que passaram pela baliza, era, cada um deles, o chibo espiatório para outros tantos golos sofridos.
Um pouco antes do intervalo, marcado pelo relógio de bolso, preso por uma corrente de prata à cintura de um árbitro improvisado, chegou o Chico "Barbeiro" que, naquela altura, jogava a guarda-redes na equipa das minas da Panasqueira. Num pronto, tomou lugar na baliza para alívio daquele que no momento lá estava e já tremia como varas verdes.
Escusado será dizer que, com um jogador assim experiente, o jogo tomou logo outro rumo, deixando os zebeirenhos completamente peados.
Não conseguiram marcar nem mais um golo. O jogo acabou pato porque a sua linha avançada, desde a entrada do Chico, e após três ou quatro defesas arrojadas deste, apardalou-se de tal forma que mais pareciam lambrandeiras atarantadas, caçando bichos em lavoura acabada de fazer.
Para os da Zebreira este empate teve o sabor de uma estrondosa derrota. Perdendo, desta feita, a oportunidade de fazerem prevalecer aquilo que julgavam ser a sua supremacia, meteram a bola no saco e ficaram à espera da próxima.
O Chico "Barbeiro", esse, cuja alcunha lhe assentava por via da profissão do pai, passou a ser circunstacialmente conhecido pelo Barrigana, nome que lhe deu o Tónho Louro, tropa no Porto, comparando-o com então famoso guarda-redes portista.
No final do jogo, dirigindo-se ele à fonte de água ferrenha (que ainda existe), para remover a sede que lhe secava as golas, foi desviado pelo Leitão, que o levou até à sombra do azinheiro onde a família tinha a merenda. Bebeu cada um seu coucho de vinho, tirado de uma cabaça, que estivera toda a manhã a refrescar na charca junto à fonte e lá foram assistir à missa campal.
Dizia um para o outro, referindo-se aos zebeirenhos:
- Estes Alcatruzes ficaram a andar à nora. Pensavam eles que isto era chegar à burra e dar-le um beijo, mas tchaparam-se, que os levou o diabo.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS

adjunto; ajuntamento
Alcatruzes; nome por que eram conhecidos os habitantes da Zebreira
chegar à burra e dar-lhe um beijo; expressão que significa facilidade
cômaro; pequena elevação ou irregularidade no terreno
coucho; recipiente de cortiça
lindes; cômaro que forma extrema de um terreno
num pronto; imediatamente
pato; empatado
pichorro; caneco de barro
pilota; bola
pipílros; flor da forma da margaça, mas de pétalas amarelas
rasgavam pana; flatulavam
rêlha; peça metálica do arado que rasga a terra
trusses; ceroulas ou cuecas de homem

5 comentários:

Anónimo disse...

Lá está. Quem sabe, quem não deve, quem não teme, não está condenado, não tem sequer que ser sabujo. Um admirável texto, na minha opinião, parabens.

Anónimo disse...

Dizia a minha avó que a capela estava a ser construida quando o meu avô regressou de França onde integrou o contigente português que participou na guerra de 14-18.
Portanto foi erigida aí por 1916/1917.

Al Cardoso disse...

Belissimo texto, fez me lembrar outras romarias da minha regiao, so que aqui mediam-se as forcas a porrada, uma vez ate o presidente da camara levou uns tabefes. Festa onde nao havia porrada nem era festa nem nada.

Anónimo disse...

Durante a grande seca, no verão de 1980 (ou 81?), a fonte do Carvalão ou do São Domingos como também é conhecida, que se situa a cerca de 7 Km da Zebreira, foi a tábua de salvalção para muita gente desta aldeia, onde há poucos poços, para conseguir uma pinga de água para o dia a dia.
Dado o excesso de procura, a água também começou a escassear na fonte e muitas pessoas tiveram de recorrer a poços em Toulões onde a havia com maior abundância,sendo fornecida de bom grado a quem a solicitava. Nestas ocasiões as rivalidades eram enterradas emergindo então uma solidariedade sincera.
Nesta fonte de água férrea, que matava a sede aos pastores que por ali andavam, tinha-se quase sempre de afastar uma espécia de nata alanranjada que cria à tona e que apesar so seu sabor caraterístico, por vezes desagradável, bebia-se com inteira satisfação e confiança.

João Paulo Esperança disse...

Mais um testemunho sobre a vitalidade que o jogo do pau já teve pelo país... Mais informação sobre Jogo do Pau aqui.