quarta-feira, maio 10

14-2006: O pagador de promessas


O Pito-Calçudo dizia ao seu companheiro Zezinho, à saída da escola:
- Se me deixares brincar com o teu carrinho de cana, prometo que te ensino um ninho de Tropa-gato, com passarinhos já vestidos e tudo!
- Olha q’o prometido é devido!
- avisava o Zezinho.
Com alguma desconfiança, emprestou-lhe a cana que encaixava no eixo que unia as duas rodas de madeira. Até tinha um volante feito com a rodela de cortiça que servira de tampão à gateira da porta da casa.
Pito-Calçudo cumpriu a promessa. Foram espreitar à buraca que servira para encastrar o andaime na parede de pedra do palheiro do ti Proposta, onde o casal de Chapins-azuis todos os anos escondia o ninho. Ambos, ansiosos por poderem acariciar a penugem macia dos passarinhos e verem aqueles pedacinhos de vida abrirem o bico a pedir comida, ficaram desacorçoados.
Os passarinhos já tinham abandonado o ninho. A promessa saíra gorada.
- Tu já sabias! Enganaste-me!
- Não, não t’enganei!
Levando o Zezinho, a ver um ninho de Pintassilgo numa maçãzeira ali ao lado, não faltou à palavra e cumpriu a promessa, ganhando a confiança do companheiro de escola.
Para o Pito-Calçudo, palavra de promessa era palavra sagrada e para ser cumprida. Aprendeu-o com o pai que cultivava a honra da palavra desde garoto.
Cresceu e fez-se homem. A fé acompanhou-o sempre e era essa fé que servia de moeda de troca para negociar com a santa da sua devoção - Nossa Senhora das Cabeças.
O Pito-calçudo, já galo capão, prometera à Santa, que se não o deixasse ficar mal nas sortes pegaria no Guião, na primeira procissão que se realizasse em sua honra, depois de passar à inspecção militar e daria a volta ao povo mostrando o caminho a quem seguisse na procissão.
- E assim foi!
Por ocasião das celebrações religiosas multiplicam-se as promessas. Muitos prometem e tem que cumprir. Caso contrário, todos os pecados do mundo desabam sobre a alma do faltoso.
Custasse o que custasse, teria de ser ele a arrematar no leilão à porta da igreja, por dever, esse direito. A promessa valia principalmente por não passar pela desonra do mancebo que, não sendo apurado nas sortes, era considerado um inútil. Conseguir tal façanha, fazia do moço, aos olhos dos outros, um homem emancipado, capaz de, sozinho, fazer face às agruras da vida. Por esta razão o Guião da procissão era o mais disputado entre os valentes, mas nenhum homem se propunha transporta-lo se não tivesse a certeza de o conseguir fazer, sob pena de ser zurrado quando viesse o Entrudo.
Fazer o percurso pelas ruas da povoação, segurando a pulso aquele mastro com uma vela desfraldada, onde jaze, pintado, o Sagrado Coração de Jesus, não é obra para qualquer um. Tentando vencer, para além do peso próprio, as acções do vento, que sempre teima em fazer vacilar o portador como casca de noz em mar revolto.
E como se não bastassem os enfeites no adro da igreja e nas imediações, que atrapalham um pouco, eis que chegou o progresso. A electricidade e o telefone, com todo o emaranhado de fios e cabos que zigzagueiam sobre as nossas cabeças, criaram novas barreiras, obrigando a baixar a guarda para poder passar-lhes por baixo. E não eram raras as vezes em que cheirava a chamusco.
A uma dada altura, veio uma rabanada de vento, desequilibrando o Galo-capão, quando este se preparava para passar por baixo de mais um obstáculo. Para não estchabaçar meia duzia de telhas do beirado do lagar do ti Dominguinhos, deixou ir o Guião contra a parede do quintal do Tónho Maria, do outro lado da rua. Não o aguentando, este escavacou-se na crista do muro, caindo a bandeira para o lado de dentro.
Mas promessa é promessa. Como estas situações mandam sempre desenrascar, enquanto a malta saltou o quintal para recuperar aquele pedaço de tecido que apesar de pintado se mantinha imaculado, ele que não era nenhum atadinho, foi num pronto ali à primeira horta do Ribeirinho, desengatou a vara do caibro da burra de tirar água.
Enquanto o foguetório começava a acelerar, assinalando o regresso da procissão à igreja, compôs a bandeira do Guião na ponta da vara e proceseguiu como se nada tivesse acontecido.
Pito-capão passou na dura prova.
Foi mais uma promessa cumprida e aquele expediente de remediar tão habilmente uma situação embaraçosa, valeu-lhe também a admiração do pai da sua mais que tudo, que já havia apalavrado num dos bailes de partido. A prova veio à hora da ceia, quando este lhe concedeu o sim ao pedido da mão da filha. Nessa noite, foram juntos ao arraial, caminhando lado a lado, oficialmente autorizados.
Fazendo emergir aspectos valorativos, muitas promessas são cumpridas com ofertas valiosas, acompanhadas de juras de amor.
Mas a vida é feita de muitas voltas e volta não volta prega-nos uma partida. Por vezes não há promessa que nos valha.
Galo-capão, já daqueles bem duros de roer, com família constituída, viu um dia um filho ficar sem tino, ao cair de cabeça, quando brincava num galho de uma oliveira.
Prometeu uma vaca à sua santa, depositando nela toda a fé na cura do menino. Com a mulher, enfeitou os cornos à Marrafa, com flores variadas e levou-a a dar uma volta à igreja para mostrar à santa o que estava a prometer. As flores resplandeciam na cabeça do animal, mas delas sobressaía a mais nobre de todas: a rosa de albardeira – (Paeonia-lusitanica-Miller). Uma flor vermelha, com uma corola muito semelhante à da tulipa e com um tufo de estames a imitar um sol, apanhava-se nos montados para ocasiões especiais. Hoje parece estar extinta (pelo menos por aqui) talvez porque o seu simbolismo de fertilidade e abundância, desapareceu com "suão" que irrompeu por esta região trazendo o deserto e a desolação.
A Senhora das Cabeças nunca lhe quis cobrar a promessa. O garoto, fora mesmo despedido dos médicos e dos benzilhões.
Apesar de todas as contrariedades, a sua fé nunca esmoreceu, mantendo acesa a chama da esperança.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
bailes de partido; bailes organizados em casas particulares em que só entravam os convidados
benzilhões; videntes, curandeiros
estchabaçar; partir em cacos
sortes; Inspecção militar
Tropa-gato; Chapim (passarinho)
zurrado; sujeito a zurra, envergonhado por um grupo de pessoas

5 comentários:

Joaquim Baptista disse...

Caro Amigo, gostei desta narrativa, embora o fim seja triste. Quanto às rosas albardeiras ainda as há para os lados da barragem da Idanha, perto do Cabeço dos Mouros. Tenho um conhecido que trouxe bolbos delas e actualmente tem um canteiro delas que rebentam todos os anos.

Anónimo disse...

Amigo Joaquim.
Folgo em saber que ainda se conseguem encontrar alguns exemplares. Eu já várias primaveras que palmilho terreno nas imediações de Toulões, por onde antigamente abundavam, mas nada. Lembro-me que, antigamente, encontrar uma rosa de albardeira era quase como encontrar um ninho. Marcava-se o sítio, guardava-se segredo na esperança que ninguém a colhesse antes de nós, enquanto esperávamos que ela se fizesse flor.

Al Cardoso disse...

Linda narrativa e nao ter sido verdade, tem o amigo uma imaginacao fertil, de qualquer maneira os meus parabens.
Nunca devemos fazer essses contratos com os santinhos, pois corremos o risco deles nao gostarem da troca, tera sido o caso do miudo e da vaca.

Um abraco beirao.

Anónimo disse...

Amigo Al
Acredite que, todas as histórias retiradas do fundo da arca da memória, têm uma base verídica.
Posso confidenciar-lhe que a história deste post são na realidade três histórias, passadas com pessoas diferentes e em épocas diferentes, mas que têm uma coisa em comum: a promessa/palavra e o cumprimento da mesma.
A primeira, que serve apenas de introdução, é perfeitamente intemporal e passava-se em qualquer ambiente rural, embora hoje, em Toulões como noutros lugares, já não seja possível, simplesmente porque já não há garotos e pássaros poucos.
A segunda parte, a do Guião, passou-se aí por 1970, em pleno auge da guerra do ultramar, em que, para alguns jovens instruídos para evidenciarem a sua valentia, o facto de algum não poder vir servir a Pátria, era encarado como um verdadeiro trauma.
A parte da vaca, passando-se aí por 1930/40, era uma história que muita gente contava na aldeia.
Juntando as três histórias, como se de uma se tratasse, a imaginação, se assim lhe quiser chamar, apenas vem, dentro das minhas limitações literárias, adornar a narrativa.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Ao reler o texto reparei que a última frase do rascunho não foi copiada.
Aui deixo a frase que também já foi acrescentada:
"Apesar de todas as contrariedades, sua fé nunca esmoreceu, mantendo acesa a chama da esperança."