(clicar sobre o desenho para ampliar)
Como o prometido é devido, aqui deixo o complemento referente ao post anterior e, à falta de foto, uma tentativa de ilustração do acontecimento que mobilizava as gentes de Toulões nos dias de Entrudo.
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Por entre uma infinidade de tradições carnavalescas que nos é dado conhecer nas mais diversas formas de divulgação, ou do conhecimento das tradições nas aldeias das redondezas, não há registo de nada que aluda à Vaca Galhana, que nos dias de Entrudo, tresmalhada pelas ruas do povo, investia à marrada contra tudo o que mexesse e balançava o seu rabo enchapoçado de água ou de lama, conspurcando a fatiota aos mais imprevidentes.
Pode mesmo considerar-se esta tourada trapalhona um acontecimento sui generis, que mobilizava toda a rapaziada (era uma brincadeira de rapazes), sendo diversos os que encorpavam o animal e se iam revezando. Alguns mais expeditos faziam gala em mostrar a sua arte no manobrar do engenho, símbolo de coragem e virilidade, enquanto outros mostravam os seus dotes a esquivarem-se do dito. Apesar do espalhafato que provocava e dos aparato que chegava a roçar a violência, tinha grande aceitação por parte de todos e era considerado o momento alto do Entrudo em Toulões.
Ninguém sabe quem é o pai da vaca. Sendo de origem desconhecida, pode dizer-se que o espírito que norteava o seu comportamento se assemelha ao dos Caretos, que, endiabrados, percorrem as ruas das aldeias Transmontanas. O nome advém, presume-se, da forma galhana (atabalhoada e mal composta), com que a vaca era manobrada no decurso deste insólito divertimento.
A Vaca Galhana era constituída por um par de varilhas, um par de cornos, que se guardavam de ano para ano, fixos solidariamente a uma das travessas (a que ficasse à frente), formando a cabeça do bicho. Os mais criativos penduravam um chocalho para assinalar a sua presença e para dar mais realismo à figura.
Na rabadilha atava-se um bocado de calabre, com um farrapo de saca na ponta, formando o tufo que constituía a ponta do rabo da vaca, considerado o elemento principal do arranjo, pois era dele, depois de bem ensopado, que dependia o sucesso das investidas.
Assim como por onde vai a agulha vai a linha, também por onde ia a vaca lá seguia o “rabejador ou aguadeiro” a fazer chegar o caldeiro do encharcado, para ensopar o rabo.
Como as ruas eram em terra, quando chovia, dispensava-se o caldeiro. Era nos charcos de água lamacenta formados no chão, que o rabo da vaca se enchapoçava e aqui o estrago mudava de monta. Para se proteger do seu próprio rabo, o manobrador usava uma saca pela cabeça, dobrada a fazer de capuz, que também lhe protegia as costas.
Contam os mais velhos que até princípios da década de 60, antes de se ter dado inicio à debandada, quase generalizada, da população mais jovem, na expectativa de encontrar noutras paragens melhores condições de vida, as ruas se enchiam de gente para correr a Vaca Galhana. Como naquela altura havia os partidos que rivalizavam entre si, aconteciam despiques que davam azo a que mais que uma vaca espalhasse a confusão pelas ruas, sendo, com alguma frequência, os encontros entre elas pretexto para ajustes de contas.
Diz-se que nesta ocasião no Entrudo se perdoa tudo, mas eram bastas as vezes em que o ditado não era seguido à letra.
Ficou célebre o episódio do Manhouvas, grande manobrador da Vaca. Deixando-se antecipar pelo Mné Ferrenho na hora de pedir namoro à Mari Blouca, vingou-se enchapoçando o rabo numa bosta com que as primas da Galhana costumavam perfumar o ambiente e lho deu a cheirar sem pedir licença. O Mné Ferrenho não foi de modas. Mais esperto, na primeira oportunidade retribuiu a delicadeza ao Manhouvas. Agarrou no caldeiro de vianda que a ti Catcheirinha tinha à porta, pronto a levar para a engorda do marranchito que tinha numa furda da malhadinha, e despejou-lho de chapeirão nas ventas.
Já houve que se lembrasse de fazer renascer a tradição, mas tratando-se de um divertimento que ficaria fora de contexto na época que corre, por em termos de higiene não ser o mais recomendável, a ideia não vingou. Visto com os olhos de hoje, as proporções de insalubridade e violência que atingia, parece desadequado, mesmo se às vezes punha em sentido a prosápia, a soberba e os afins.
Considerando as tradições como um dos principais factores de conservação dos laços de união entre filhos da mesma terra, também eu gostaria rever a Vaca Galhana, em moldes mais consentâneos com a nova realidade das aldeias, fazer de novo encher de gente as ruas de Toulões.
Temo, entretanto, que algum figurão, tipo político com ideias iluminadas que dá tiros no pé, se lembre de confundir o comportamento de vaca louca da Galhana com os sintomas da BSE e faça Toulões desaparecer de vez.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
enchapoçado; ensopado
encharcado; mistura pastosa insalubre
calabre;corda grossa e resistente utilizada para atar as carradas
marranchito; bacorinho
Pode mesmo considerar-se esta tourada trapalhona um acontecimento sui generis, que mobilizava toda a rapaziada (era uma brincadeira de rapazes), sendo diversos os que encorpavam o animal e se iam revezando. Alguns mais expeditos faziam gala em mostrar a sua arte no manobrar do engenho, símbolo de coragem e virilidade, enquanto outros mostravam os seus dotes a esquivarem-se do dito. Apesar do espalhafato que provocava e dos aparato que chegava a roçar a violência, tinha grande aceitação por parte de todos e era considerado o momento alto do Entrudo em Toulões.
Ninguém sabe quem é o pai da vaca. Sendo de origem desconhecida, pode dizer-se que o espírito que norteava o seu comportamento se assemelha ao dos Caretos, que, endiabrados, percorrem as ruas das aldeias Transmontanas. O nome advém, presume-se, da forma galhana (atabalhoada e mal composta), com que a vaca era manobrada no decurso deste insólito divertimento.
A Vaca Galhana era constituída por um par de varilhas, um par de cornos, que se guardavam de ano para ano, fixos solidariamente a uma das travessas (a que ficasse à frente), formando a cabeça do bicho. Os mais criativos penduravam um chocalho para assinalar a sua presença e para dar mais realismo à figura.
Na rabadilha atava-se um bocado de calabre, com um farrapo de saca na ponta, formando o tufo que constituía a ponta do rabo da vaca, considerado o elemento principal do arranjo, pois era dele, depois de bem ensopado, que dependia o sucesso das investidas.
Assim como por onde vai a agulha vai a linha, também por onde ia a vaca lá seguia o “rabejador ou aguadeiro” a fazer chegar o caldeiro do encharcado, para ensopar o rabo.
Como as ruas eram em terra, quando chovia, dispensava-se o caldeiro. Era nos charcos de água lamacenta formados no chão, que o rabo da vaca se enchapoçava e aqui o estrago mudava de monta. Para se proteger do seu próprio rabo, o manobrador usava uma saca pela cabeça, dobrada a fazer de capuz, que também lhe protegia as costas.
Contam os mais velhos que até princípios da década de 60, antes de se ter dado inicio à debandada, quase generalizada, da população mais jovem, na expectativa de encontrar noutras paragens melhores condições de vida, as ruas se enchiam de gente para correr a Vaca Galhana. Como naquela altura havia os partidos que rivalizavam entre si, aconteciam despiques que davam azo a que mais que uma vaca espalhasse a confusão pelas ruas, sendo, com alguma frequência, os encontros entre elas pretexto para ajustes de contas.
Diz-se que nesta ocasião no Entrudo se perdoa tudo, mas eram bastas as vezes em que o ditado não era seguido à letra.
Ficou célebre o episódio do Manhouvas, grande manobrador da Vaca. Deixando-se antecipar pelo Mné Ferrenho na hora de pedir namoro à Mari Blouca, vingou-se enchapoçando o rabo numa bosta com que as primas da Galhana costumavam perfumar o ambiente e lho deu a cheirar sem pedir licença. O Mné Ferrenho não foi de modas. Mais esperto, na primeira oportunidade retribuiu a delicadeza ao Manhouvas. Agarrou no caldeiro de vianda que a ti Catcheirinha tinha à porta, pronto a levar para a engorda do marranchito que tinha numa furda da malhadinha, e despejou-lho de chapeirão nas ventas.
Já houve que se lembrasse de fazer renascer a tradição, mas tratando-se de um divertimento que ficaria fora de contexto na época que corre, por em termos de higiene não ser o mais recomendável, a ideia não vingou. Visto com os olhos de hoje, as proporções de insalubridade e violência que atingia, parece desadequado, mesmo se às vezes punha em sentido a prosápia, a soberba e os afins.
Considerando as tradições como um dos principais factores de conservação dos laços de união entre filhos da mesma terra, também eu gostaria rever a Vaca Galhana, em moldes mais consentâneos com a nova realidade das aldeias, fazer de novo encher de gente as ruas de Toulões.
Temo, entretanto, que algum figurão, tipo político com ideias iluminadas que dá tiros no pé, se lembre de confundir o comportamento de vaca louca da Galhana com os sintomas da BSE e faça Toulões desaparecer de vez.
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
enchapoçado; ensopado
encharcado; mistura pastosa insalubre
calabre;corda grossa e resistente utilizada para atar as carradas
marranchito; bacorinho
partido; grupo restrito de rapazes que organizava bailes privados, condicionando ou proibindo o acesso a elementos masculinos extra grupo, não convidados. Eram geralmente identificados pelo nome de um dos elementos com maior destaque ou pelo nome do tocador que animava esses bailes.
varilhas; armação feita com duas tábuas aparelhadas, unidas nas extremidades por duas travessas emalhetadas, que habitualmente eram utilizadas na peneira da farinha para o pão, apoiando-as nas abas transversais da masseira sobre as quais deslizavam duas peneiras geminadas num movimento de vai-vem.
18 comentários:
Chanesco:
Desses partidos dos 60s, aí por Toulões, deve muita gente ter saudades.
O correr da galhana podia ter pouco de salubridade, algo de violência, mas muito de genuinamente divertido!
Mais um belo relato das tradições populares da zona. Obrigado.
Um grande abraço.
Que corram outrra vez, a vaca Galhana e as outras, nas ruas das nossas aldeias, pois então!
A tradição, tudo perdoa, não é?
abraço
Que saudades do nosso Carnaval! Bom fim de semana
Viva!
Viva também a vaca Galhana e todos os outros bichos que outrora fizeram a delicia do Carnaval. Esse o genuíno!
Obrigado pela visita ao PopulusRomanus.
Um Abraço
Desconhecia esse costume da vaca galhana, no Entrudo de Toulões. Entrudo, repito, porque simpatizo mais com este termo do que com Carnaval. E, honestamente, acho muito mais piada à vaca galhana do Entrudo dos Toulões, do que às meninas "incouras" do Carnaval de Torres, de Sines, inté do Rio.
Tu és uma visita "do coração"! E dizes coisas saudáveis...Quando arranjas patrocínio para um livro teu, com tudo o que nos contas? Essas juntas (não de bois) de freguesia, sei lá, Câmaras...andam a fazer o quê? Tenho pena destas coisas andarem só no ar e se perderem... Tu, como o MAD de Monchique mereciam ser publicados, espalhados aos 4 ventos. Olha, um abraço amigo!
Para além de textos lindos, equilibrados e cheios de bom humor, também a ilustração de qualidade, motivos sempre acrescidos para visitar este excelente blogue. E o português vernáculo que tanto aprecio. Parabéns e óptimo fim-de-semana.
Estou plenamente de acordo com a publicação destas memórias vivas, elas são, na sua essência, a memória colectiva de uma aldeia e até de uma região. Quanto à singulariedade do costume, tenho-lhe a dizer que recolhi esta mesma prática da aldeia das Cegonhas (Rosmaninhal), exactamente como o chanesco a descreve.
Ah, o seu desenho que ilustra a prática está fabuloso!
um abraço
Peço desculpa pelo erro, em vez de se ler "esta mesma prática da" deve ler-se "esta mesma prática na".
Não me diga que, além da escrita, domina a bela arte da ilustração? Parabéns dobrados, então!
Nada conheço que se pareça com a vaca Galhana, por sinal bem divertida e contada a preceito.
As tradições, porque pertencem ao povo, vão recebendo algumas transformações e é isso que lhes dá vida e permite que cada geração lhes chame suas. Se, para os hábitos actuais, for preciso civilizar a vaca, pois que se faça, que não vejo mal nenhum nisso (e já nem as ruas serão de terra batida e poucas bostas se encontrarão no empedrado ou no asfalto.
Um abraço
Pegando na sugestão da bettips, também acho que estas memórias deveriam ser reunidas em livro. A associação a que pertenço, a Proençal, já publicou alguns livros sobre a história e as tradições de Proença. Os Toulões pertencem ao mesmo concelho, portanto é capaz de fazer sentido falarmos sobre o assunto!
Diga alguma coisa...
Bom dia!
BRILAHNTE! Adoro estas tradiçoes e de pelo menos poder saber delas, ja que se encontram em desuso.
Na aldeia da minha mae (Santulhao, em Tras-os-Montes) acontece algo semelhante mas usa-se farinha... talvez uma opçao seja usar farinha e água, uma mistura que nao prejudica a saude e é suficientemente divertida para usar no Entrudo... quen sabe?
Bjicos!
Excelente texto, excelente ilustração.
Gosto da maneira como faz reviver este tipo de tradições~.
Pouco a pouco perdemos a nossa identidade como povo, ao importar tudo.
Um abraço.
Tambem eu gostaria de ver reviver essa tradicao e assistir a ela, mesmo que depois tivesse que ir meia hora para debaixo do chuveiro!
Mas como ja escrevi algures, "o que esta a dar e o carnaval de sambistas despidas, no nosso frio mes de Fevereiro!"
Um abraco d'Algodres.
Ó meus snrs.
Temos que admitir que a ilustração desta crónica vale por mil palavras, sem dúvida. Caro Chanesco, este desenho diz muito daquilo que o meu amigo completou com o seu texto de se lhe pôr bem os olhos em cima e tentar recordar outras situações que se viviam noutras épocas nas nossas aldeias. Mas não o subsituiu.
Os tempos eram outros, vamos nós dizendo. Mas que constituíam excelentes momentos de convívio e camaradagem lá isso constituíam. Até mesmo aquelas cenas em que nos amofinávamos uns com os outros ajudavam ao reforço da identidade comunitária.
Bom trabalho.
Um abraço
António
Amigo Chanesco,
A história tem aquela descrição de acontecimentos passados como tu espectacularmente sabes fazer. A ilustração, linda, fez-me lembrar um desenho feito, também a carvão, há talvez mais de duas dezenas de anos e que eu mantenho pendurado numa parede da minha casa, com muito carinho. Beijos nossos cheios de amizade.
Passei de novo para ver o blogue, verificar se havia novos textos e desejar boa semana.
Meu amigo: por aqui só passa e pàra, gente BOA! Não, não é um peditório: é um pedido. Vai ao "Voando por aí" link no meu blog, por favor. Desapareceram 3 cães "amigos" do Montijo, tu lerás...um deles talvez tenha sido visto...longe, Celorico da Beira???? pode lá ser... Mas queria dizer, a ti a a todos os olhos ternos e compassivos que por aqui passam, e conhecem, e se desdobram: falem, divulguem...eu sei lá, há coisas estranhas...
Eu daqui (Porto) nada posso fazer. Depois diz-me se conseguiste passar a mensagem. Desculpa, até o Al Cardoso, lá por terras do sem fim...não sei, tentamos. Um abraço forte do litoral...
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