sábado, abril 14

9-2007: As alvíssaras

A nomeada da Senhora do Almortão (ou do Almurtão) expande-se muito para lá da campanha da Idanha, tal como referem algumas quadras da cantiga. O ecoar do seu "cancioneiro" chega aos quatro cantos do país, recriado pelo talento de grandes nomes do nosso panorama musical, trazendo alguns benefícios na implementação do turismo nesta região.
Vultos como Zeca Afonso, Amália Rodrigues, Dulce Pontes, Janita Salomé, e outros, dando voz ao tema da Sra. do Almortão, encantados com a sua musicalidade, tornaram ainda mais célebre esta ária considerada o hino do município de Idanha-a-Nova.
Muitas vezes, inadvertidamente, dávamos connosco a cantarolá-la, um pouco à maneira de como, em grupo na escola, se estudava a tabuada em voz alta: "Todos sabíamos a música de cor, mas alguns tardavam a acertar com a letra".
Se a Senhora do Almortão (a cantiga) é conhecida pela quase generalidade dos portugueses, pela simplicidade de três ou quatro quadras que unanimemente foram escolhidas pelos cantores atrás referidos, das quais se destaca uma, talvez a mais conhecida, tida como uma sentimental manifestação do patriotismo raiano, pedindo à "tão linda arraiana para virar costas a Castela e não querer ser castelhana", poucos saberão que esta canção não tem letra definida.
Todos os anos, novas quadras de cariz popular, muitas delas improvisadas num despejar de alma, são cantadas por vozes anónimas, principalmente por mulheres devotas dos povos das redondezas dando vida nova à cantiga.
Acompanhadas por concertinas, realejos, zamburras e pelo rufar ritmado dos adufes que elas próprias (as agora designadas Adufeiras) tocam de forma tão exímia, com essas novas quadras cumpria-se a tradição de "dar as alvíssaras à Virgem do Almortão", como que a fazer anunciar a chegada do "rancho" à romaria, para venerar a santa padroeira do concelho.
A criatividade dessas quadras, juntamente com a actuação dos romeiros no alpendre à porta da ermida, chegaram mesmo a ser apreciadas por um júri, com vista a premiar os melhores desempenhos, tendo havido anos de grandes despiques entre aldeias, para ver qual delas ganharia "o ramo".
Esta tradição também era naturalmente cumprida pelas gentes de Toulões.
O canto de um grupo de mulheres, às vezes esganiçado, mas sempre afinado por uma fé inabalável, mesmo abafado pelo som dos diversos instrumentos que as acompanhavam, convenceu o júri a atribuir-lhes o simbólico troféu, que eu me lembre, por duas ou três vezes.
Era ainda a altura em que os cantares eram ensaiados durante a viagem em grupo, feita em carros de vacas, carroças engalanadas, burros e cavalos albardados com adornos garridos em que se parava a meio percurso para almoçar e dar também repasto às bestas.
Pelo caminho afinavam-se as gargantas. As mulheres cantavam para decorar os versos novos e os homens, incluindo os tocadores que pouco ou nada cantavam, também afinavam as suas, mas era mais com a "borracha" do vinho à laia espanhola.
Para a maioria destes, o "ir dar as alvíssaras" era uma quase obrigação num toca a despachar porque na festa há outras prioridades.
Terminada a intervenção, empinados à porta da capela, os homens empontavam as mulheres com a canalha e, acompanhando os tocadores, iam eles dar a volta às capelinhas e ler umas epístolas, balcão aqui, balcão ali. Os cânticos a Nossa Senhora depressa descambavam em despiques à desgarrada entre romeiros de diversas freguesias, sempre ao toque da concertina.
Até à hora da missa campal e da procissão que se lhe segue não havia regra.
Mesmo para alguns, só a derradeira morteirada da descarga pirotécnica a assinalar o final da procissão, que para as mulheres significa o recolher de Nossa Senhora à ermida e para os homens o recolher dos romeiros à sombra onde os espera uma merenda bem farta, punha termo ao sempre a aviar.
Contava-se a história de tocador "afamado", ainda com a figadeira a destilar os excessos dos três dias de festa em Toulões em honra da Senhora das Cabeças, que se realiza nas vésperas da Sra. do Almortão, para além de carregar com a concertina carregava também com uma valente borratcheira.
Quando quis recolher ao local onde tinha a merenda, para ir mais leve, foi aliviar a carga nas traseiras do muro que circunda o recinto. Já sem força nas pernas, aí ficou de joelhos um bom catcho numa penitência involuntária, com corpo sobre a sanfona e o chapéu caído por terra perante um ror de gente num constante formigar.
Na hora da abalada, depois de mais uma volta pelo recinto para comprar as últimas lembranças aos que não puderam vir à festa, o "rancho" preparou-se para a cantadela na apresentação das despedidas à santa, mas do tocador não havia rasto.
Encontrado em maus preparos e com a cabeça ainda pesada, a custo lá se levantou.
Rabugento, apanhou o chapéu do chão e qual não foi o seu espanto que, ao pô-lo, tilintaram-lhe umas quantas moedas na careca. Uma esmola de dez ou quinze marréis fora deixada por alguns fiéis mais caridosos que o confundiram com um mendigo.
Lá se compôs e foi com o grupo cantar o "até pró ano". Ele, que raramente cantava, embalado ainda pela desgarrada de umas horas atrás, saiu-se assim:
Senhora do Almortão
Ajoelho-me a vossos pés
Bem-haja por esta esmola
Que vale bem uns copos de três

Bem, esta quadra não pertence certamente à recolha feita por alguns ilustres idanhenses, estudiosos do fenómeno poético dedicado à Senhora do Almortão, mas, agora que já vos oiço a trautear a cantiga, aqui vos deixo umas quadras de Toulões, (que poderiam bem ser de outra terra qualquer do concelho), para poderdes cantar no dia 23 de Abril (de segunda feira a oito dias) já que este ano eu não vou poder lá estar.

Senhora do Almortão
Este ano já trago noivo
Venho-vos agradecer
Com estas flores de goivo

Refrão (substitui o bem conhecido "olha a laranjinha...")
Vai de fogo e mus’ca
Q’arrail tão lindo
Ai, velhos e novos
Tudo lá vai indo
Vai devagarinho
Sem alevantar pó
Trai-lari-lo-lela,
Trai-lari-lo-ló

Senhora do Almortão
Já passei o Aravil
Levo-vos rosas brancas
No regaço do mandil

(refrão)

Senhora do Almortão
Nossa Santa padroeira
Vimos enfeitar-vos o andor
Com rosinhas de albardeira

(refrão)

23 comentários:

Ana Ramon disse...

A falta de tempo faz com que passe sempre apressada pelos cantinhos dos amigos. Mas desta vez tive que dispôr de mais tempo ao ler este teu texto sobre as alvíssaras à Virgem do Almortão. É que nunca tinha ouvido falar na zamburra :)) e como não gosto de permanecer na ignorância, andei a pesquisar no google e encontrei esta descrição: instrumento musical tradicional que consiste num cântaro de barro, cuja boca é tapada com pele de ovelha bem esticada e onde é preso um pau de gavanito (?). Para extrair o som, molha-se a mão em água e desliza-se sobre o pau que está preso no centro da pele. Este movimento irá vibrar a pele produzindo um som grave que faz lembrar o zurrar de uma burra.
Há instrumentos tradicionais que são curiosíssimos.
Pois agora vou ver se consigo adquirir uma zamburra :))))
Obrigada pela informação. Um beijinho

Jorge P. Guedes disse...

Dá gosto vir aqui, Chanesco!

Aprende-se, fica-se bem disposto, lê-se bom português, enfim, é uma jornada de sol!
Obrigado.

Um grande abraço.
JPG - O Sino da Aldeia

Anónimo disse...

Entre os momentos musicais que guardo no coração destaco aquele em que ouvi mulheres idanhenses a tocar o adufe que acompanhava as suas vozes, para mim, incomparáveis.

À Senhora do Almurtão é forçoso que rezemos:

Senhora do Almurtão
olhai p'ra nós nesta hora:
alguém fechou Portugal
e deitou a chave fora!

Um abraço e obrigada por mais um naco de boa prosa.

Tozé Franco disse...

Não deixa de ser curioso que, tendo ido à Corunha nesta sexta e sábado numa visita de estudo, este assunto tenha sido tema de conversa entre a minha pessoa e um colega, cujas avós são de Belmonte e de Penha Garcia. Lá veio à baila a Senhora do Almortão (a canção e o santuário) e os adufes. Lá me falou nas avós que ainda continuam a tocar adufe e a cantar.
Eu prório já experimentei para acompanhar a dita cuja música e outras.
Um abraço e não posso deixar de dizer mais uma vez que é uma permanente descoberta ler este blogue.

ricardo disse...

...que saudades da festa...
bem-hajas pelo post!
abraço
r.

Meg disse...

É sempre com muito carinho que leio o que escreves. O teu amor pela nossa língua compensa-me dos atropelos que ela sofre todos os dias. A tua presença no meu cantinho foi uma grande alegria para mim...
Um abraço, Chanesco

Joaquim Baptista disse...

E segunda feira lá estaremos para visitar a Santa.

Abraço

Joaquim

MaD disse...

Ao ler tão espectacular descrição servida por esta prosa de excelência, tenho a sensação de estar a viver a festa da Sª do Almortão. Só lá estive uma vez e não foi em dia de festa. Mas, agora, quanto daria para poder assistir (participar) nessa romaria, que deve ser bem interessante...
Salve, caro Chanesco!

a d´almeida nunes disse...

Mais uma belíssima estória do arco da velha!
Ai "A Sra. do Almortão"! Não me lembrava da letra nem sequer da música, mas o nome da cabtilena tinha-o presente na memória já antiguita, a recordar cousas doutros tempos.
Um grande abraço, Canhesco!
António

Anónimo disse...

Todos os anos, no fim-de-semana da Romaria da Sra. do Almortão .... lá vamos nós de Lisboa para assistir áquela missa e procissão que tanto nos lava a alma !!!!A voz do Sr. Padre, que está inequivocamente ligada a toda a cerimónia, dá-nos ainda mais fé e esperança para irmos suportando mais levemente algumas partidas que a vida nos dá. A hora do recolher da Virgem é de chegar às lágrimas com um misto de sensações que só as consegue quem lá está. A próxima 2ª. feira é outra vez UM GRANDE DIA, de Paz !!!!!! Beijinhos

Entre linhas disse...

È extraordinário como expões as tradiçoes e cultura dessa terra.

Bem hajas

Bjs Zita

bettips disse...

Já tinha passado mas o que queria ler e dizer, não era rápido. Na tal estada por aí, lá fui à Srª do Almortão, a cantar "...a tua capela cheira, cheira a cravos cheira a rosas, cheira à flor de laranjeira". Só lá, percebi, finalmente, a cantiga do Zeca Afonso (não queiras ser castelhana...). Não havia ninguém, só um calor imenso. Tenho fotografias lindas, com as oliveiras e o lajedo que andei a ler. Gostei muito de te encontrar aqui, descrevendo a história como tu a sentes. A nossa "portugalidade" é diferente ...é ingénua mas genuína como esse povo que canta! Ah...e se um dia editares um livro, um opúsculo que seja, diz-me! Abraços da beira mar.

bettips disse...

...esqueci que sobre o Museu Guggenheim, é giro ir ver como foi "pensado" e construído. Tinha uma ideia antes, na altura da inauguração, mas fui verificar, lendo as palavras do arquitecto e a cooperação dos espanhóis. Que diferença! Uma curiosidade, sem alardes de cultura...

Anónimo disse...

Olá! Já [ votaste ] no selo do Zeca ??

Papoila disse...

Vim ao teu blog pel' O Sino da Aldeia. Não me arrependi. Ano passado estive na Sª do Almortão... Um calor de assar "miolos"...
Gostei de rever aqui a Beira dos adufes.
E a cantiga!

eddy disse...

Trai-lari-lo-lela
trai-lari-lo-ló

É fantástico como ecoa na minha memória toda esta ancestral cantilena, exposta e representada à porta daquele remoto templo. Admiro profundamente aquela aquele alpendre.

um abraço raiano

Jorge P. Guedes disse...

Chanesco:

Peço, quero, exijo um exemplar autografado quando sair o livro!

Um abraço do sineiro.

Anónimo disse...

Devo dizer que adorei o seu post sobre a senhora do almortão=D
Sou de lisboa mas desde pequena que vou a idanha devido a ter lá familiares.
A senhora do almortão é uma tradição lindissima, uma das melhores de Portugal.
Nao sabia que o seu hino tinha sido mudado.
Eu amava cantar com a minha avo a parte da "Olha a lanranjinha que caiu caiu, num regato de agua e nunca mais se viu..."
É pena este ano nao ter ido lá

beijos e boa continuação com o blog

Ass: Marta

Anónimo disse...

É madrugada, melhor altura pela serenidade, para apreciar este magnífico blogue de grande qualidade e beleza, das melhores páginas de conteúdo regional.

O tema, a Senhora do Almurtão (ou Almortão, ou Almotão), foi tratado com esmero, como aliás é timbre. Até no Minho a lembrança da Senhora do Almurtão é imensa, graças às cantigas que se trauteava e que perdura na memória.

Já agora umas breves notas etimológicas: os eruditos advogam que a forma correcta é Almotão, mas há muito que a forma popular consagrada é Almortão (que soa Almurtão).

Vou daqui plenamente satisfeito com este extraordinário artigo. Parabéns!

Al Cardoso disse...

Sempre temos excelentes "posts" aqui na "Arca da Velha" e este nao deixa todos os outros ficar mal.
Que tradicoes tao lindas o meu amigo descreve tao bem!
Bem haja e continue pois entre outros aqui tem um leitor atento.

Um abraco d'Algodres.

Anónimo disse...

Amigo Chanesco,
Chegamos ontem à noite da Romaria da Sra. do Almortão!! Como habitualmente,trazemos a Alma cheia de fé, alegria e muita paz. O manto da Nª. Srª. era lindo... os cânticos que tu tão bem conheces, lavam-nos os pensamentos. A missa este ano contou com a presença do Sr. Bispo de Portalegre. A hora da despedida (da recolha da Virgem à capela), foi como sempre, o ponto alto das emoções. Fiquem bem, e para o ano, se a Nª. Srª. permitir, estaremos todos lá concerteza!!!!! Beijinhos e bom feriado.

Anónimo disse...

Chanesco, um desejo de b feriado e
um beijo*

Anónimo disse...

Olá
Este ano vou lá estar e Como diz a primeira quadra.
Beijinhos