quinta-feira, maio 24

13-2007: BTT em Toulões (crónica)

(portfólio fotográfico, em baixo, na entrada anterior)
Há dias assim!
Vai-se à terra passar uns dias com a família e retemperar no sossego da aldeia, onde nunca nada parece acontecer, e eis que surge, inesperadamente, uma agitação descontrolada; uma azáfama citadina invulgar por estas bandas, que, neste caso, até é um bom argumento para trazer à rua os velhotes que por aqui vão andando.
A realização da 2ª Maratona Internacional BTT de Idanha-a-Nova, neste fim de semana, que integrou Toulões no seu percurso, trouxe ao conhecimento dos mais idosos as vivências de uma modalidade desportiva com grande adesão, para eles completamente desconhecida.
Os cerca de 900 atletas participantes, (mais 1000 inscritos a edição deste ano), vindos de diversos pontos do país, e também alguns espanhóis, deram tamanho colorido à aldeia que mais parecia dia de festa. E pelo que constatei, comparando com os 350 da edição do ano passado (a 1ª) que por cá passou quase despercebida, apercebi-me que provaram, gostaram, repetiram e trouxeram amigos.
Com partida de Idanha-a-Nova, num percurso que uniu as localidades de Alcafozes, Toulões, Salvaterra-do-Extremo, Zarza-la-Mayor (Espanha), Segura, Zebreira e regresso de novo à Idanha, os "biciclistas" tiveram de percorrer, por montes e vales, "caminhos com algumas zonas técnicas (como dizem os entendidos)", circulando sempre por trilhos rurais que nem o GPS consegue vislumbrar.
Entre Toulões e Zarza (Sarça, como se diz por aqui) esses trilhos são os mesmos pelos quais os antigos contrabandistas palmilhavam no seu jogo do gato e do rato com as autoridades aduaneiras, dum e outro lado da fronteira e que, posteriormente, foram também usados pela rapaziada nova quando ia de bicicleta até Salvaterra para num saltinho a Espanha, ir às festas, comprar sapatilhas, calças da Lois ou chumbinhos de pressão de ar para caçar pássaros.
Quantas vezes, por aqueles gorroais no atravessar dos ribeiros, às vezes com dois numa bicicleta, se furava uma câmara de ar, contrariedade essa que mandava desenrascar.
Se os participantes nestas provas se equipam com boas ferramentas e sofisticado material de substituição, naquele tempo, enchia-se o pneu com um nagalho feito de duas ou três paveias de junça, de juncos e ás vezes até mato que, tal como nesta ocasião, "ala que se faz tarde, que no caminho tem de se andar a nove".
Mas a competição não é levada a sério por todos da mesma forma. À chegada ao posto de abastecimento aqui instalado, os que lutavam por um lugar na frente nem sequer pararam, mas os farrombões, os que participam habitualmente nestas iniciativas a pensar mais no jantar convívio do que na classificação final têm outras prioridades:
- Onde é que está esse chouriço afamado, que eu só cá vim por ele?
Está claro que chouriço nem cheirá-lo, mas certamente que o sentir da hospitalidade raiana não deixou ninguém indiferente. Bastava ver a forma como as gentes de Toulões que assistiam ao passar dos concorrentes se dispuseram, espontaneamente, a colaborar na distribuição de garrafas de água e comida (estou convencido que nas outras terras foi igual) e como alguns desses concorrentes, nada preocupados com a classificação, paravam e conviviam.
Para estes (e estas – honra seja feita às senhoras participantes), a ver pelo desgaste físico com que por aqui passaram, rompendo por uma canícula de 35º, pouco habitual em fins de Maio, o melhor prémio terá sido um banho retemperador ao atravessar a Ribeira Espanhola (rio Erges) pela ponte nova, ali no Vale de Idanha, ligeiramente a montante de Salvaterra.
Em Toulões trataram-se também algumas mazelas decorrentes de algumas quedas aparatosas (ossos do ofício).
Foi no aspecto da assistência que quanto a mim houve um senão da organização que poderia ter aqui previsto, já não digo um posto de enfermagem, mas pelo menos uma caixa de primeiros socorros. Uma dor de alma ver alguns chegarem aqui todos esfarraixados nas pernas e nos braços, sem haver ninguém, nem nada, para desinfectar escoriações.
Esta visão ensanguentada trouxe logo à discussão, entre os presentes, comparações conjecturadas e foi então que veio à baila um episódio passado com o Gardoxa; o primeiro garoto a ter uma "bciclete" nos Toulões.
Uma vez, ainda numa fase de aprendizagem no domínio do equilíbrio em duas rodas, pedalando atabalhoadamente pela rua da igreja abaixo, mesmo à porta do ti Cascarão, atropela um vulto do qual não se conseguiu desviar. O vulto, uma mulher, caiu para um lado e ele caiu desamparado para o outro. Ao levantar-se da calçada, tolhido, exibindo umas chagas que nem Lázaro, na sua ingenuidade de gaiato de sete anos, dirige-se à mulher com a educação que a raiva às vezes nos dá em momentos de descontrolo: "Filha da puta, por causa de ti é que eu caí!"
A senhora, sentindo-se ultrajada na sua razão, esgargalou-lhe os olhos com que noutras ocasiões lhe impusera respeito. O Gardoxa, ao reconhecer naquele olhar contundente a autoridade da dona Deolinda, sua professora, pareceu ter desaparecido por entre as pedras da calçada embrulhado na dor que as feridas lhe provocavam.
Mas se alguns se "espalharam" foi porque não tiveram a sorte milagrosa do Zé "Chouchinho", um ás do pedal que fazia da sua pasteleira, mais pesada que o cilindro de ferro fundido que jaze cheio de ferrugem no campo da bola, o seu meio de transporte para o trabalho.
Uma história também relembrada ocasionalmente entre amigos, ocorrida numa tarde de um início primavera, ainda invernosa, sobre o pontão do ribeiro do Vale das Vacas.
O pontão, acabado de ser construído, com a laje do tabuleiro a fazer uma pequena depressão a meio onde se acumulava água das chuvas, formava um charco que obrigava os passantes a contorná-lo, passando junto à berma ainda sem guardas.
O Zé regressava do trabalho, num corte de lenha no Vale de Cardas, acompanhado por alguns colegas que também se deslocavam diariamente de bicicleta.
Chegado ao pontão, ao tentar desviar-se do charco, a roda dianteira da bicicleta resvala do pontão e o Zé, por um enésimo instante, viu-se mesmo estatelado três metros abaixo, no leito do ribeiro.
Mas eis que uma instintiva guinada de guiador fez com que, milagrosamente, uma pontinha de inerte saliente do betão, lhe deitasse mão à roda e a pusesse de novo em cima do pontão. Naquele aparato, e enquanto o Zé se recompunha do susto, limpando o suor com que o nervoso lhe inundou a fronte, instataneamante caleada, só a cesta da merenda, que vinha mal presa no suporte traseiro da bicicleta, parece ter sofrido danos colaterais ao mergulhar de chapão na água lamacenta do charco.
"Tinhas o anjo da guarda debaixo da ponte!"
O fenómeno foi objecto de estudo cientifico por parte dos colegas que pararam a tentar perceber como tal acontecera. O próprio Zé "Chouchinho" todos os dias ali descia da bicicleta como que para se ver pedalar e rever o movimento impossível que o segurou.
Esta história, que contada parece "história", mesmo com o testemunho dos colegas, deixou muitas vezes o Zé agarrado ao epíteto de poupa.
"Pou-pou, és um mintroso!" diziam-lhe.
Mas história à parte, com esta corrida de bicicletas que animou Toulões, foi gratificante verificar como estes acontecimentos mexeram pela positiva com esta população idosa, tirando-a da rotina quotidiana.
Como diz o ti António "Lagarto" referindo-se à velhice: "cada dia que passa, é um dia a mais outro a menos!" e assim se alterando o velho ditado com a palavras adequadas na idade certa:
Deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e retarda o envelhecer.

19 comentários:

Al Cardoso disse...

Bonitas historias a complementar um evento que se espera se repita mauitas mais vezes. Da uma prazer enorme ler as suas cronicas, temperadas com termos antigos, bem haja.

Um abraco do Al d'Algodres.

disse...

Parabéns pelo seu blog e pela sua escrita cativante. Realmente dá gosto ler as suas histórias e os relatos de outras já passadas.
Eu sou uma das raparigas que fez a prova, mas a mini, que acabou em Zarza. Cheguei a Toulões num grupo de 7 raparigas. Infelizmente não tirei fotos pois, por essa altura, já a máquina estava a queixar-se da bateria e por teimosia não tinha levado as pilhas.
Convido-o a visitar o meu blog "Mulheres no BTT", onde encontrará mais relatos e mais fotos, não tão bem colocados como as suas.
Também sou amiga do "Homem do Coiote" do blog BTT-CTB, que pedalou com o meu namorado nesse dia.A buzina que levava dava-me cabo dos ouvidos, mas por sorte eles andam mais depressa que eu e íam bem mais à frente! Eh! Eh!
Até breve.
Teresa Martins

Varadero disse...

Parabéns pela entusiasta descrição da passagem de tais senhores e senhoras "pedalantes" por Toulões. E que belas histórias tem para contar!

MaD disse...

Ainda há dias por aí estive e, com a maravilhosa pacatez que presenciei, quem me diria que, num só dia, passariam tantos ciclistas por Toulões...
Provavelmente, mais do que toda a população da própria aldeia.
Mais um lindíssimo apontamento dos seus, com todos os condimentos: a actualidade, a tradição e a imaginação e fluência de um escritor de primeira linha.
Fiz-lhe uma brincadeira no Parente.
Um forte abraço serrenho.

Anónimo disse...

Chouriço... pois pois!

Já não há quem mate... é uma pena!

Abraço transcudano

Jorge P. Guedes disse...

Ah, quem me dera ser um farrãobão!

Um abraço.

Tozé Franco disse...

O passeio, de certeza, foi interessante e com descrição destas ainda ficamos com mais pena de não ter participado.
Um abraço.

A.João disse...

Parabéns, parece que vou se um visitante assíduo deste Blog. Pois eu participo nestes eventos por diversas razões: pelas paisagens (lugares que são difíceis de visitar de outra maneira), pelas amizades que se ganham, pelo convívio, pelo vicio de pedalar, e claro a comidinha :)
O ano passado também estive em Idanha, e para o ano se puder lá estou outra vez.

Um abraço

a d´almeida nunes disse...

Mais um bom pretexto para acrescentar ao excelente rol que já aqui consta de comoventes histórias do arco da velha.
Um abraço, Chanesco, mais um dia outro a menos.
António

bettips disse...

Ora até o BTT tem graça, aqui contado pelo meu amigo! E claro os novos dão alegria e vitalidade à terra, temos que os cativar para esta troca de energias. Gostei também de os ver aqui a comentar. E rever as ruas. A gente não se perde, não, gostando de tantas coisas comuns. Um abraço, meu caro!

Kaos disse...

Está a decorrer uma greve geral de blogs. Se desejares participar podes copiar a imagem que está no meu blog. Obrigado
Um abraço

eddy disse...

Amigo Chanesco

Uma delicia o que nos narra! também estou para investir numa saudável "Bike", talvez para o ano Toulões veja passar mais um raiano...

um abraço

Jorge P. Guedes disse...

Já fiz este percurso. -_-

Por isso, hoje, é só para deixar um abraço e desejos de bom fim-de-semana e a continuação dos óptimos trabalhos habituais.

J.Sineiro

Meg disse...

Lê-lo é sempre um prazer. Palavras como tão poucos sabem dizer.
Um abraço

ManuelNeves disse...

Viva.

Excelente texto, óptima história. Tudo o que um "simples" passeio de bike (como alguns dizem)pode propiciar; terras de encantar, gentes de boa têmpera, chouriço de agradável sabor...

Aproveito para lhe agradecer a visita ao Populus e em jeito de desculpas, explicar que motivos profissionais e pessoais têm-me impedido uma maior assiduidade no espaço da blogoesfera, o que tentarei colmatar muito em breve.

um Abraço

Jorge P. Guedes disse...

"Cada dia que passa é um a mais e outro a menos"

"Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida".

Verdades banais, cruelmente banais, mas tão verdades!...

um abraço
Jorge G

Anónimo disse...

ha dias assim.
pensava que era deitar cedo e cedo erguer dá saude e faz crescer. alem de termos na nossa lingua proverbios que se contradizem ainda sao expressos de maneiras diferentes.
é uma historia bonita que conta a maneira de ser da nossa gente.
leonoreta

Meg disse...

Ó Chanesco, caríssimo amigo, venho reclamar, desta vez...
Quero mais (e não devo ser só eu, só que os outros senhores têm vergonha).
É um gosto, mas sabe a pouco, meu amigo...
E a escrever como escreve, não conheço mais ninguém, eu!
Um abraço

Ana Ramon disse...

Olá amigo. Pois também fiquei agarrada à descrição deste evento a remexer na pacatez da terra. Nunca liguei às corridas de bicicleta, mas explicadas assim até que me entusiasmei com a leitura. Não sei andar de bicicleta (só de patins e dos antigos) e tinha sempre desgosto quando familiares e amigos davam um passeio de bicicleta pela serra e eu ia depois de carro até ao destino combinado. Mas no Natal passado, o meu marido ofereceu-me uma bicicleta de 2 lugares e agora já posso ir com eles...desde que alguém vá comigo :))))
Foi um prazer estar aqui. Beijinhos