Ainda a propósito da Lei do Tabaco, cuja aplicação, com rigor, parece ser tudo menos consensual.
É uma constatação que, para o Estado, o tabagismo sempre foi um problema pouco preocupante. Bem menos que a gestão dos impostos gerados pela comercialização do tabaco.
Durante anos a fio, mesmo já se sabendo que o tabaco era prejudicial à saúde, permitiu-se o incentivo ao seu consumo através de vários meios propagandísticos e, até, segundo alguns rumores, recorrendo à mais refinada hipocrisia que rege a política, nele era feita a adição intencional de substâncias causadoras do aumento da dependência.
Subitamente, sem a necessária preocupação com o desmame, foi posta em prática a proibição de fumar em tudo quanto é sítio, não se descortinando com que finalidade: se para proteger os fumadores passivos, se para diminuir o tabagismo nos activos e, consequentemente, reduzir os gastos com o tratamento da doença, ou se para agradar a algum lobi "bruxellois".
Seja como for, uma coisa é certa: o governo, numa louvável atitude de magnanimidade, propôs-se a ajudar todos os fumadores. Em simultâneo com a entrada em vigor da Lei do Tabaco, o Ministério da Saúde surpreendeu tudo e todos, ao decidir encerrar os postos de atendimento das urgências hospitalares um pouco por todo o país.
A decisão não podia ser mais acertada. Estou em crer que esta medida radical, que todos os grandes fumadores agradecem, foi a forma mais eficaz de ajudar os que mais sofrem com os malefícios do tabaco, a deixarem de fumar de uma vez por todas. Mas em tudo isto há mãozinha da porca parideira da política, de cujos partos vêm a nascer os reticentes, os renitentes, os resistentes e outros indecentes inconvenientes. Estes, não conseguindo a força de vontade adequada para romper com o maquinal impulso de alimentar o vício, num acender de cigarro vêem o seu nome na lista dos proscritos pelas entidades empregadoras.
As pausas para ir à rua repor os níveis de nicotina no organismo e controlar a ansiedade provocada pela sua falta, passaram a constituir crime. Para os legisladores é mais um berbicacho envolto numa nuvem de fumo que, pretendendo-se resolvido pelo lado pedagógico, o mais provável é que siga também o caminho da coima.
O "tchupa que se apaga a deitar fumo ao ar e a semear piriscas na calçada, à hora de "fazer uma bola", a breve trecho, poderá também vir a ser reprimido.
"Fazer uma bola"?
"Fazer uma bola" é uma expressão utilizada pelas gentes de Toulões, significando uma pequena pausa para fumar na "hora do patrão".
Nascida no tempo em que a povoação fornecia matéria humana para desenvolver trabalho árduo nos muitos coitos existentes pelo termo, esta balda era naturalmente aceite pelos proprietários. A fazer jus às actuais pausas previstas (ou não), na recente lei laboral, que tanta celeuma tem provocado, faziam parte integrante dos acordos de trabalho apalavrados.
As bolas eram tantas quantas as combinadas, mas eram os capatazes que estipulavam o momento de paragem e o tempo que duravam (10 a 15 minutos), variando o critério segundo o capataz, fosse ou não fumador.
Durante a jorna, na altura de sol-a-sol, passou a constituir um direito adquirido, mas unicamente pelos fumadores. Quem não fumava não usufruia do direito à bola, pelo que, alguns trabalhadores, principalmente as mulheres a quem, por preconceito, estava vedado o direito de fumar, sentindo-se injustiçados pela desigualdade, fizeram ouvir as suas razões mas sem resultado.
Na realidade, e somando diariamente todos os tempos de pausa, quem fumava trabalhava menos hora e meia a duas horas que os restantes trabalhadores.
Só muito mais tarde, por uma questão de justiça, também para com os não fumadores, a evolução das mentalidades trazida pelos raios de sol de uma primavera de Abril, impôs a equidade entre homens e mulheres.
Posteriormente, "fazer uma bola", para além do seu significado de origem, passou também a constituir uma curta paragem para dessedentar o organismo desidratado pela arduosidade da labuta, ou simplesmente para uma bucha repositora de energia.
Como origem da expressão contavam-se várias teorias, mas a que parece mais plausível, é que relatava a história do ti Isidro Aleixo, aquando dum quinto nos Abegões.
Nos trabalhos do campo, principalmente na ceifa, em pleno verão, não se podia fumar. O risco de apichar fogo à seara merecia as mais apuradas atenções. Assim sendo, os ceifadores, (também chamados quinteiros), estavam autorizados a interromper a labuta para poderem matar o vício.
Ainda naquele tempo não se sabia o que eram cigarros enrolados mecanicamente (este foi um luxo que apareceu muito mais tarde). O tabaco vinha, avulso, em embalagens de onça, sendo enrolado numa mortalha de papel ao momento para ser fumado. À falta de tabaco, muitas das vezes faziam-se cigarros com barbas de milho, moía-se parra seca, e outras ervas, para matar o vício de boca… e não perder o direito à bola.
O ti Isidro era um fumador que não ganhava para tabaco.
-"Ele no o fuma, come-o!" - diziam, referindo-se ao facto de o homem, entre duas bolas, pôr o cigarro apagado nos beiços, a um canto da boca, fazendo-o bailar de um lado para o outro com a ponta da língua, desfazendo-se paulatinamente com a saliva.
Fazia cigarros enormes, mas atamancados. Tão grosseiros que pareciam bolas de embude; daquelas que se deitavam nas charcas da ribeira para entontecer os peixes e facilitar a sua apanha.
Todos se admiravam com aquela alarvidade que contrastava com arte de bem-fazer o cigarro. Antes de o acender, o fumador punha na sua feitura toda uma habilidade no depenicar do tabaco com a ponta dos dedos, autênticas pinças a escalpelizar nas entranhas da pataca, no espalhar, no humedecer com a língua a cola no bordo da mortalha, no enrolar o tabaco dando-lhe a forma e a consistência desejadas.
Era toda uma linguagem gestual que revelava muito mais do que a simples vontade de fumar. Este ambiente de velório ao cigarro culminava na precisão do gesto de petiscar a pederneira (mais tarde do espanhol isqueiro de torcida (mecha)) com que se iniciava o ritual de cremação do amortalhado.
O vício do Ti Isidro e seu modo desajeitado, não lhe permitiam contemplações. Tanto que, durante muito ano, chegada a hora da pausa para enrolar, e fumar, um cigarro, todos ganhavam jeito a chamar pelo companheiro de jeira:
- Ti Isidro, vamos cá a fazer uma bola!
E bola ficou até hoje!
21 comentários:
Pois até o direito de fazer uma bola nos querem tirar.
Ainda ninguém do governo veio explicar por que não se proibe a venda dos cigarros, sim, que aquilo...tabaco não é!
A hipocrisia e a demagogia campeiam, nesta como em tantas outras leis!
VERGONHOSO! SOEZ! BATOTEIRO!
Nota à margem: O meu pai, contavam-me, fumou muitas barbas de milho na altura da Guerra.
Um abraço
Jorge G.
olá______________Chanesco
muito aprendi________:))
neste teu______excelente texto!!!
parabéns_____perfeito!
beijO c/ carinhO
Pois é estes psudo- liberais,não gostam de andar ao sabor da moda, e não da "bola"
Saudações amigas e boa noite
Estamos sempre a aprender e o meu amigo a ensinar-nos!
Um abraco dalgodrense.
Afinal sempre fomos um país de bola. Seja ela qual for!...
Mais um excelnte naco de prosa. Parabéns.
Quando era miúdo, fui passar uma temporada a uma aldeia por alturas das vindimas e lembro-me bem das pausas para fumar um cigarro, embora não me lembre qual o nome que davam à pausa. Fazia-me ainda confusão (a mim menino da cidade) que se parasse por volta das 10 da manhã para almoçar e se jantasse cerca da 1 ou 2 da tarde.
Um abraço
Mais uma das suas histórias fantásticas. Continuo a incentiva-lo a publicar este valioso fundo mnemónico relacionado com esta encantadora aldeia.
Um "saludo".
Não conhecia esta expressão. Mas dá para pensar como é que hábitos antigos, entretanto esquecidos por conveniência do poder económico, mais tarde transformados em direito dos trabalhadores e agora cada vez mais contestado. Aonde pode chegar a estupidez e ganância do homem!
Humanismo precisa-se! Sem perder o tino da produtividade claro está. Só que há quem se esqueça que o pensamento é muito forte e não machado que corte a sua raiz.
Há que dar algumas "baldas" ao pessoal se não o trabalho não rende, poem ter a certeza disso.
Um abraço, Chanesco
António
O texto e o humor aqui vertidos são uma maravilha, e o escrito está cheio de regionalismo que tanto aprecio. Passar aqui é sempre um assumido prazer pela qualidade do blogue. Apetece dizer: são coisas do arco-da-velha, como diziam os antigos, aquela gente maravilhosa do extinto mundo rural que tanto sabia. Nos tempos negros da miséria, até barbas de milho faziam as vezes de tabaco. Boa semana.
O texto e o humor aqui vertidos são uma maravilha, e o escrito está cheio de regionalismo que tanto aprecio. Passar aqui é sempre um assumido prazer pela qualidade do blogue. Apetece dizer: são coisas do arco-da-velha, como diziam os antigos, aquela gente maravilhosa do extinto mundo rural que tanto sabia. Nos tempos negros da miséria, até barbas de milho faziam as vezes de tabaco. Boa semana.
Um post onde não faltam o bom senso, o bom gosto e o sentido crítico de um ser pensante que podia integrar uma equipa ministerial.
Bjos
Olha Chanesco, nessa foto aparece um irmão da minha falecida sogra o Ti Manel Bernardo.
Abraço
Joaquim
Caro Chanesco
O hábito, tão humano, de fazer uma pausa no trabalho existia no mundo rural que eu conheço. Sem capatazes nem pretextos. Quem quisesse fumava, quem quisesse bebia ou, simplesmente, descansava ou dava à língua. Mas eram ritmos do tempo em que se pagava à jorna (ou se tornava a jeira), impensáveis agora, em que a máquina se paga à hora e lambe o chão, mesmo de noite.
Mais uma vez, gostei muito deste seu texto.
Um abraço
Adorei a bola!!!!
Beijicos
Querido Chanesco,
Em dia de aniversário, HOJE tenho uma surpresa para os amigos.
Espero por ti.
Um abraço
Querido Chanesco,
Venho agradecer-lhe a companhia que me fez deixar-lhe votos de um bom domingo.
E um abraço
Passo para ver e apreciar este espaço, do melhor que se faz na blogosfera. Boa semana.
Venho para lhe desejar uma Páscoa feliz.
Um abraço
Em garoto, ia fumar o "mata ratos", o "definitivos" o "provisório", para o pinhal, juntamente com demais canalha. À vinda, mascávamos folhas de oliveira para fazer sair o "aroma", por via das mães não nos coçarem pelo pecado. Parece que nos fazia sentir mais homens...
Querido Chanesco, ando a fazer o compasso, mas nem umas amendoasinhas te trago´
Só um abraço e o meu desejo de uma Páscoa feliz.
Outra abraço
sauda�es amigas com votos de Pascoa Feliz
Olá Amigo. Mais uma vez aqui fiquei a saborear as cenas que tão magnificamente retratas. É um enorme prazer usufruir das memórias que partilhas connosco.
Um beijinho
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