domingo, janeiro 21

3-2007: A tornada



No Vale da Gama, um coito gerido por um dos irmãos Manzarra, o Frederico (o velho Fudrico, como a ele se referem todos quantos o conheceram), morou e trabalhou, durante anos a fio, quase meio povo dos Toulões. Formando lá uma pequena comunidade, esta gente, apesar das dificuldades que lhes estremunhavam os sentidos, desde que não caíssem no torpor, tinham a sobrevivência garantida.
À semelhança de outros crios ali nascidos, veio ao mundo o Tónho Louro. As vizinhas que atenderam a mãe no parto, para dar vida própria ao rebento, confiaram no espírito de entreajuda, na experiência ganha de outros sucessos e na providência do destino, traçado pela natureza para este acto que enobrece a mulher.
Também ali lhe brotaram os primeiros dentes, agarrado a uma côdea de casqueiro e deu os primeiros passos "aqui caio, ali m’alevanto". Uns anos mais tarde, empenhado, foi à escola, a marcar passo com outros garotos do coito, na légua que serpenteava o montado entre Toulões e a casa que o viu nascer. A professora Vivina só lhes encontrava a falta naqueles dias de invernia, em que as grandes enchentes, com aquelas águas revoltas atormentadamente assustadoras, tornavam a Toula intransponível ou, então, quando, no tempo dos ninhos, o arrulhar das rolas chamava por eles como uma harmoniosa melodia de encantar.
Aos onze anos entrou de pastor. Com afinco foi dando conta do recado, tanto na guarda do rebanho como na defesa das pastagens, ficando célebre um episódio em que, sozinho, encorreu à pedrada dois pastorzecos das redondezas, que teimosamente queriam meter o gado em terrenos do Vale da Gama que ele defendia como sendo o seu território, bem demarcado, com limites à laia de um verdadeiro predador.
Esta passagem valeu-lhe o reconhecimento do patrão que ao fim de pouco tempo o promoveu a vaqueiro do gado da boa vida, dedicando-lhe mesmo uma sábia tirada: "a silva que forte há-de ficar, logo de pequena quer picar."
Ainda imberbe, o trabalho foi-lhe dando lições de maturidade. Como todos os jovens, ao atingir a idade em que a razão ainda vacila e a afirmação é dominada por um grosso, mas inseguro, "eu já sei", ia formando as suas próprias ideias sobre a vida, assumindo sempre estoicamente a responsabilidade pelos seus actos.
Em suma: ia-se tornando homem.
A sua dedicação valeu-lhe uma recompensa, mesmo antes de fazer dezassete anos. Teve a possibilidade de, pela primeira vez, cumprir o sonho que aos poucos vinha realizando em pequenas tarefas: lidar uma junta de bois como um ganhão de verdade.

Eram vésperas de Natal.
Recebeu ordem do ti João Carralo, moiral e homem de confiança da casa Manzarra, para carregar uma tora de lenha grossa e a levar à Idanha a casa dos patrões.
- Ó Tonho, levas essa lenha e na tornada trazes as comedias. E aprofila-te como é dado mê homa, se queres guardar a consideração q’o patrão tem pro ti!
Era verdadeiramente o primeiro trabalho em lhe era dada total autonomia. Apesar de alguma apreensão não denotou sinais de insegurança.
Os bois?, falava com eles e o caminho?, conhecia-o de cor pelas vezes que andou com os ganhões-de-ano na acarreja da cantaria, aquando da construção dos poços e das regadeiras da horta do Carrascal em que a pedra era toda arrancada, aparelhada e acarinhada, por uma afamada família de canteiros, os Mouras, no Barrocal, logo ali nos arrabaldes da vila.
Decorria um Inverno engadanhado. Para não se enregelarem como as talhadas de granito que formavam a carrada, acendiam-lhe o lume em cima e com a lenha que iam apanhando à beira do caminho, mantinham acesa a calorosa chama que os reconfortava.

Lá fez a viagem sem percalços.
Chegou, foi desaguar os bois e dar-lhes algum descanso e, descarregados os madeiros, sentou-se na coiceira do carro a merendar.
Após um breve descanso acondicionou as sacas de trigo e feijão pequeno, assim como dois potes de zinco, a transbordar de azeite, que formavam as comedias.
Na hora de regressar, foi de chapéu na mão, num hábito tradicional de respeito, despedir-se e desejar Boas Festas aos patrões e também receber as costumeiras broas do Natal.
Apesar de alguns laivos de severidade e alguma injustiça para com os seus trabalhadores, nesta altura festiva o velho Fudrico dava largas à sua generosidade: cem mil réis a cada uma das famílias, era um festim.
Ao receber a bolsa do dinheiro das mãos do patrão, este não se ficou sem lhe dar um imperativo conselho:
- Vais p’la estrada! A carga de água que aí vem é capaz de te levar c’o diabo! Ainda te atolas no caminho e não tens quem te acuda".
Este aviso, de quem conhecia as voltas do tempo, pereceu não o convencer. A serenidade com que fizera a viagem pela manhã e a sua convicção, auguravam-lhe confiança para a tornada.
Jungiu os bois à canga e engatou-os ao carro. Verificou o nó das cornais e, com a palma da mão, deu duas pancadas no chavelhão que engancha o tamoeiro para se certificar de que tudo estava conforme.
Fez-se ao longo caminho que o esperava e se estendia ao longo de umas seis horas bem medidas, cadenciadas a passo de boi. Desceu a íngreme barreira da Idanha, com os animais em esforço a ampararem o peso do carro, atulhado a passar o meio fugueiro. Com os canêlos já polidos a resvalarem na inclinação do macadame da estrada recém construída, austeramente aspergida de asfalto, os animais tinham alguma dificuldade em progredir. Por falta de estabilidade nas patas, procuravam apoio encostando a lombeira ao tiro do carro mantendo assim o equilíbrio.
O Tónho, vara ao ombro como os velhos ganhões, seguia devagar à frente da junta, cortando-lhe o ímpeto na procura de lhe travar o ritmo do passo, evitando que desalvorasse por ali abaixo.
Até chegar ao fundo da barreira e atravessar o rio, era uma angústia. O alívio só chegou pouco antes de entrar na pequena ponte com guarda corpos em granito, que galga o Ponsul, parecendo estar estrategicamente colocada para encanar os desgovernados para a entrada da capelinha da Senhora da Graça, que com a porta escancarada, parece estar de braços abertos para os receber.
Ultrapassada aquela quase abismal dificuldade o Tónho deslumbrava-se com a estrada nova. Nas zonas planas, apesar da marca ondulante deixada pelos rodados do carro, vergado pelo peso da carrada, o rolar suave e o passo certinho dos bois, dava a ideia aparente de que a junta puxava em poupança de esforço. Mal se sentia o chiar do carro, num som abafado pelo couro do toucinho que lubrificava a as zonas de atrito entre o ferro seco do eixo e o casquilho metálico da chumaceira, coroada pelo azinho das rodas de onde ramificavam os raios.
O velho Fudrico estava certo. Era muito melhor ir pela estrada.
Mas à passagem pelo leque da Senhora do Almurtão, o seu subconsciente, num incentivo à irreverência, parecia dizer que havia um senão: ir pela estrada até ao Vale da Gama era quase uma volta dobrada e, além disso, os canêlos dos bois agradecem mais a macieza da terra batida dos caminhos do que a rispidez do cascalho apenas agregado pelo alcatrão.
Tomando o peso às vantagens e desvantagens, não hesitou em contrariar a vontade do velho patrão e, rumando pelo caminho que conhecia como a palma das mãos, seguiu confiante.
O céu ficou brusco de repente, formando enormes castelos de nuvens que não tardaram a ruir. Atormentou-se um pouco quando a chuva começou a endurecer antes de chegar ao Aravil, temendo que a enchente lhe barrasse o caminho.
Mas chegou a tempo. O Torrado e o Morgado, já com a água quase pela barriga, ultrapassaram facilmente o obstáculo e lá foram para diante.
À passagem pela Herdade da Zebreira, já mesmo a chegar à ribeira da Toula, o caminho ligeiramente encovado estava completamente inundado. Não arriscou passar por aquela água barrenta que frequentemente esconde ratoeiras e deu de roda ao charco, atalhando com a junta por um alqueive.
Não andou dez metros. O carro enterrou-se até às chedas. Ele bem puxou a auxiliar os bois e bem lhes impulsionou a força bruta, aferroando-os na carne viva das massas, mas o esforço foi em vão. O tabuleiro do carro assentou no atoleiro e ali ficou estatelado, desmaiado, com a carga inteirinha das comedias a apararem toda a água que Deus mandava. A sua valentia esvanecia-se naquele lamaçal.
O Tónho não ignorava a sua consciência. Eram estas as ocasiões que marcavam a diferença entre os homens experientes e os rapazes. Arrependia-se por não ter dado ouvidos ao patrão e pensava nas possíveis represálias. A desobediência podia valer 15 dias de castigo ou até o despedimento, mas com alguma sorte ele nem se chegaria a inteirar.
A noite invadira a redondeza e a chuva continuava diluviana.
Não havia mais nada a fazer. Desengatou a canga, enleou o tamoeiro ao chavelhão e tocou os bois que, encangados, se meteram à água, vencendo aquela torrente de energia desenfreada e desapareceram na escuridão, seguindo, guiados pelo instinto que lhes ensinava o caminho da manjedoura.
O Tónho só soube que atravessaram a ribeira por lhes ouvir o chocalhar das campainhas já do outro lado.
Impossibilitado de prosseguir, só lhe restava uma solução: ir até ao único ponto de ligação entre as duas margens que havia em toda a redondeza que era a horta do Domingos da Preta, mas até lá ainda era uma valente trota.
A custo, lá chegou. Atravessou cautelosamente o pontão e deteve-se por um instante para escutar o infernal cantar das águas em sobressalto. Um arrepio assovinou-lhe a espinha ao lembrar-se do susto que apanhou, daquela vez que num descuido, o Carreirinhas ia sendo levado na enxurrada. A força e coragem foram a sorte dele, senão, talvez aparecesse no dia seguinte, hirto e já inchado, preso numa galhada de salgueiro ou nos braços arpoados de uma silveira.
Deixara de chover. Tentando orientar-se na escuridão, rodeou o vulto do cabeço dos Malhadis, retomou o caminho com passo mais apressado no encalço dos bois, mas o atraso era enorme.
Quando chegou ao arraial do Vale da Gama, altas horas, já o pai, que andava de alevanto, lhe tinha acautelado a junta e se preparava ir à sua procura.
Nem ceou. Comeu duas filhozes que a mãe acabara de fazer e foi-se deitar ao palheiro onde dormiam os rapazes.
No dia seguinte levantou-se cedo, como todos os dias, esquecendo-se por completo que era dia de Natal.
Enquanto todos se preparavam para ir aos Toulões beijar o menino Jesus, o Tónho Louro foi ter com o moiral para lhe dar explicações do sucedido e pedir uma segunda junta e um cambão, para ir desatolar o carro das comedias.
O ti João Carralo, por na sua juventude ter passado pelo mesmo, foi compreensivo, mas não deixando passar a ocasião, perguntou-lhe:
- Atão o patrão no te disse pra vires pla estrada?
INTÉRPRETE PARA FORASTEIROS
acarreja; transporte contínuo em comboio
andar de alevanto: levantar-se de noite por razões que preocupam
aprofila-te; de aprofilar-se – arranjar-se, preparar-se, ter maneiras
aqui caio, ali m’alevanto; expressão que significa também passar por dificuldades
assovinar; espetar, picar
barreira; inclinação de terreno; caminho inclinado
broas; gratificação que complementava o salário em ocasiões especiais.
brusco; nublado
casqueiro; grande pão
chedas; partes laterais do carro de bois onde se fixa o eixo
crios; crias humanas, bebés
desaguar; dar de comer aos animais para os recompensar de uma tarefa
encorrer; escorraçar, afugentar
engadanhado; com dificuldade de movimentos nos dedos provocada pelo frio
coiceira; parte do carro que se situa atrás do animal
gorrão; pedra de seixo
tora; grande quantidade retirada de um todo
tornada; viagem de regresso

19 comentários:

Ana Ramon disse...

Valeu bem a pena ter esperado pela tua disponibilidade e vontade de escrever. Foi com muito prazer que li este belíssimo texto.
Um grande abraço

Joaquim Baptista disse...

Chanesco, bom exercício da escrita.
Em Idanha-a-Velha diz-se comedorias, em vez de comédias.

Abraço

Tozé Franco disse...

Mais um excelente texto. Valeu a espera.
O vocabulário é bem interessante. Sempre digo que quando falamos todos à moda de Lisboa (pronúncia e vocabulário)por influência da televisão, vamos ter saudades deste tempo.

Anónimo disse...

Sempre me perco por aqui, como aquele caminho de ervas ao fim do dia. Só sei o Norte pelo Poente e isso é bom. Como conhecer esse frio antigo pelas tuas palavras sábias. Um beijo, amigo!

Anónimo disse...

O pitéu que nos serviu valeu bem a espera!

Além de muito bem escrita, a história é encantadora pela moral que encerra: só crescemos quando somos capazes de resolver os problemas que nós próprios criámos.

Muito bom mestre, o ti João Carralo!

Um abraço

Anónimo disse...

Fiquei arrepiado ao ler tão interessante história, descrita desta forma espectacular.
Vivi cada momento como se fosse o Tónho Ruço.
Amigo Chanesco, para escrever isto você não só sabe, e sabe mesmo, mas decerto que, de algum modo, também o viveu...
Um abraço.

eddy disse...

Caro Chanesco

Antes de tudo, parabéns pela sua sempre impressionante simplicidade de narrar estas "estórias". É um encanto as memórias dos lugares.

um abraço

Anónimo disse...

Passei para ver os amigos, apreciar o blogue, sempre com bom-gosto e qualidade, factor que me leva a visitá-lo para deixar o desejo dum óptimo fim-de-semana, apesar deste frio que enregela, mas como diz o povo «mãos frias, coração quente».

Anónimo disse...

O Ti João Carralo foi "compressivo" ou "compreensivo"?

Mais uma bela história, admiravelmente narrada com um ritmo vivo e apelativo a uma ávida leitura.
Mais uma vez, os meus parabéns por outro naco de prosa suculento e bem português.

Um grande abraço e outro para o pessoal da raia.

Chanesco disse...

Jorge

Obrigado pelo alerta! De facto, não há como passar o trabalho pelos olhos de outro, para conseguir-mos ver os nossos erros.

É "compreensivo" (está corrigido assim com outros que entretanto detectei).

Anónimo disse...

Caro Chanesco
Tenho andado um bocado "aqui caio, ali m´alevanto", de modo que até nem tenho arranjado lá grande tempo para visitar os meus companheiros de tertúlia bloguística, como eu gostaria.
Li este seu emocionante texto, duma assentada, ainda que um tanto "engadanhado".
Então não é que dei comigo a pensar nas minhas andanças pelas terras do Casal e de Ribafeita (Vise), em cima do carro de bois, o meu tio Ramalho a picar a parelha, a invocar impropérios que era de ter medo de ir direitinho ao inferno?
Temos que lhe agradecer, nós, os que aqui vimos deliciar-nos com estas suas narrativas, quais documentos que nos mostram as cenas rurais e de tempos passados, como se estivéssemos a vê-las em banda desenhada.
Um grande abraço
António

Anónimo disse...

................

Magnífico!!!

este saboroso texto, tem aromas de alguém que conheci noutra página, não sei se é a mesma pessoa, mas são oriundos da mesma região

Fantástico!

...............

Abraço e boa semana

Anónimo disse...

mto interessante :))
um beijo*

Anónimo disse...

Olá Voltei:))

O meu comentário de hoje, tem que ser assim um simples – olá e um muito sentido – obrigada – pela visita na minha ausência.

Isto é para eu ter tempo de visitar a todos.

Beijos com muito carinho

Anónimo disse...

Palavras para quê? É um escritor português .... pois é. Belo texto. Rico em vocabulário e bem escrito por quem deve ter belas histórias de vida por essas paragens!Este "Arcaz" tem belíssimas recordações.

Anónimo disse...

Passei para ver o blogue e ler os artigos novos. Bom fim-de-semana.

Anónimo disse...

Mais um magnifico texto como ja nos habituou, parabens.

Demonstra-nos como muitas vezes a juventude que julga saber tudo nao da ouvidos aos "cotas", mas muitas vezes e assim que se aprende!

Um abraco serrano.

Anónimo disse...

Boa noite.

Gostaria só de dizer que, além de conhecer muito bem a aldeia, pertenço à comissão de festas de 2007.
alguma ideia que vos surja... agradeço!!

Chanesco disse...

Que me desculpem alguns amigos que aqui deixaram um comentário identificado e que, inexplicavelmente, por via da adesão ao novo programa do blogger, passaram a ANÓNIMO.

Um abraço a todos.