quinta-feira, abril 2

5-2009: A crise da moiteira (parte 2)


A Zebreira, com mais ou menos garantias de prosperidade, desde tempos ancestrais soube proporcionar meios de sobrevivência ao seu povo que, reconhecida e agradecidamente, retribuía venerando-lhe Santo Isidro, e Nossa Senhora da Piedade.
A Herdade das Casas do Soudo (ou Herdade da Zebreira como simplistamente a designamos), propriedade com mais de dois mil hectares, pertença do povo, é administrada pala Junta de Freguesia através de um sistema comunitário de exploração agro-pecuária implementado logo de início.
Deu pão a muitos lavradores, pastores e outros que, seguindo as regras estipuladas para o seu fabrico, dela tiravam usufruto.
Sendo possuidor de uma junta de vacas, condição primordial para poder ser admitido ao sorteio dos talhões disponibilizados numa das 3 folhas a distribuir para cultivo, qualquer habitante da Zebreira podia ali orientar a sua vida. Quem não reunisse essas condições podia dedicar-se à pastorícia nas outras duas folhas que ficavam a rodar em pousio para pastagem ou trabalhava à jeira para algum dos fruidores dessa benesse.
Este processo de exploração (objecto de vários estudos de carácter sociológico – ver aqui um deles) remonta ao início do Século XVII, tendo durado até 1954, altura em foi reformulado por um diploma legal emanado do Estado Novo até ao 25 de Abril. Nesta altura, a actividade na Herdade nitidamente reduzida por mor da emigração maciça de muitos trabalhadores para Lisboa e para o estrangeiro uns anos antes, passou, sob a égide de uma liberdade em botão, a ser gerido pelo método do "regabofe".
Mas este processo, antes da primeira reformulação, tinha uma particularidade constatada por muitos toulonenses. Apesar deste lugar anexo ser (ainda com a designação de Monte dos Toulões) parte integrante da Junta de Paróquia da Zebreira, até 1951, à qual todos os lavradores de Toulões pagavam os seus impostos, era-lhes sonegado o direito de utilização, pelo impedimento em participar nos "sorteios da Herdade".
Esta é provavelmente a origem da rivalidade fratricida que perdurou durante anos entre os povos de Toulões e da Zebreira. A oportunidade de se hostilizarem e até humilharem mutuamente, nunca era desperdiçada. Perante esta atitude da recíproca falta de cordialidade entre ambos os contactos eram pouco mais que ocasionais.
Os da Zebreira, salvo bem fundadas excepções, raramente se chegavam aos Toulões. Tão raras eram que dos dizeres do povo aqui nasceu o ditado: "Zebrêrenho que pr’aqui venha, só se for de ida à Snhô d’Assenha)" aludindo ao facto de Toulões se interpor no caminho que leva ao santuário da Senhora da Azenha em Monsanto, escondido pelo horizonte recortado do vulto majestoso da serra da Murracha.
Outros, mais empedernidos, glosavam o ditado substituindo "Assenha" por "lenha", chacoteando com os que, fazendo vida na Herdade, andavam aqui pelos arrabaldes ao rebusco de uns gravatos para aquecer o caldo. É que, dada a adesão à Campanha do Trigo decretada pelo Estado em 1929 e cujos resquícios vivem ainda nas ruínas da "Agrícola", nome dado por aqui à Estação Experimental de Culturas de Sequeiro, em agonia ali no leque de Segura, uma grande parte da Herdade foi arroteada, tendo sido dizimado o montado de azinho. Ganhou-se em área cultivável, mas os utilizadores da Herdade ficaram sem a lenha das limpezas.
Por sua vez, os dos Toulões apenas se deslocavam à sede de freguesia por três, vá lá quatro, motivos: para irem à feira de Setembro, que por questões de força maior terminavam quase sempre numa rodada de albroque; para irem ao mercado de Janeiro: a derradeira oportunidade de compra do bacorinho que dali a um ano, depois de anafado com o que a terra dá, haveria de morrer deitado e uma parte amortalhada na sua própria tripa e a outra sepultada na salgadeira até haver ordem para ser exumada; para irem ao ti João Afonso mandar lavrar o assento à canalha, às vezes procurando-o na horta.
Esta razão, por falta de vagar, dia a dia protelada ou delegada em alguém que inadiavelmente tivesse de lá se deslocar, acontecia frequentemente muito para além do prazo limite. A data de nascença, sob pena de coima, teria obrigatóriamente de se encaixar nos três (?) meses anteriores à data da participação. Este delegar de funções, a juntar ao facto de o Ti João Afonso tomar nota dos registos em papel de mortalha, sujeitos a posteriormente desaparecerem em fumo, aquando da transposição para os livros originava idades falsas e deturpações no apelido de família. Bastas vezes se encontram irmãos com apelidos diferentes, filhos ilegítimos à força.
Uma última razão para justificar uma ida à Zebreira, que só acontecia perante a eminente ameaça de extrema-unção, era para uma visita de médico ao Dr. Guesóstmo (Crisóstomo), sempre na esperança de não lhe ouvir uma palavra de despedida definitiva. Este médico municipal não era propriamente um João Semana como Fernando Namora que nesta época acudia à desgraça lá "detrás da serra", mas era digno do respeito de todos, também pela forma conciliadora com que lidava com as rivalidades entre Toulões e a Zebreira.
( CONTINUA... )

8 comentários:

Mare Liberum disse...

Amigo, permita-me que assim o trate, este artigo, pela sua riqueza, tem de ser lido e relido duas ou três vezes. Sabe, como já lhe disse, sou natural de um Algarve serrano que tem muitos costumes ancestrais que nada têm a ver com o Algarve das praias nem com o turismo massivo que procura os areais para neles poder usufruir do sol e do mar calmo e quente que não têm nos seus países de origem.
Aqui não há terrenos comunitários mas há um saber viver em comunidade feito de alguns séculos.Receber a visita de um amigo é sempre um motivo de alegria e há que dar-lhe uma "covindazinha" que normalmente consiste num palaiozinho, nuns ovinhos caseiros, numas couves, numa garrafinha de azeite... tudo caseirinho.
Este outro Algarve põe a mesa ao amigo com o pão do trigo ceifado, as azeitonas de sal, galeguinhas ou retalhadas , as fatias do presunto já saído da salgadeira e o vinho da sua colheita. Temos muito em comum, assim o penso, com o povo mais setentrional deste pequeno rectângulo de que tanto me orgulho.

Bem-haja, amigo.

Voltarei a esta arca para me deliciar com os nacos de prosa onde os usos e costumes são conduto para o visitante.

Um abraço

MPS disse...

Meu caro Chanesco

Estava longe de imaginar que voltaria a ouvir falar de Orlando Ribeiro e de Albert Silbert pela gaveta aberta do seu arcaz! Onde iam já, na minha memória, as leituras sobre a Herdade do Soudo feitas nos bancos da faculdade a propósito da estrutura agrária de Antigo Regime!...

Que bem me soube lê-lo. Bem-haja por mais um belo pedaço de prosa.

Um abraço

a d´almeida nunes disse...

Cari Chanesco
Aqui na freguesia de Barreira também houve, em tempos, uma área comuntária, que, em meados do séc. passado, acabou por ser vendida a preços simbólicos, seguindo critérios que nem eu, que passei pela sua Junta de Freguesia, percebi lá muito bem.
E é assim que se justificam , em muitos casos, aquelas rivalidades entre terras vizinhas, e que hoje, pelo menos os mais novos, nem entendem a sua razão de ser.
Um grande abraço
António

Mare Liberum disse...

A leitura dos seus artigos é dos momentos que mais aprecio na blogosfera.
Bem-haja, pela divulgação dos usos, costumes e vocabulário usado na sua região.

Um património riquíssimo.

Bem-haja, amigo!

Um abraço

Ana Ramon disse...

Depois de mais uma insistência reparo que afinal o Arca Velha não estava parado e já tinha uma série de artigos novos. Tenho aqui muito para ler, mas devagarinho, para saborear a tua prosa como merece.
Fico bem contente por teres regressado á blogosfera.
Um beijinho grande

Meg disse...

Querido Chanesco,

Ler-te é uma delícia... pela vivacidade da escrita, pelo saber que nos transmites e por imagens como esta...

do bacorinho que dali a um ano, depois de anafado com o que a terra dá, haveria de morrer deitado e uma parte amortalhada na sua própria tripa e a outra sepultada na salgadeira até haver ordem para ser exumada

Adorei.

Um abraço

bettips disse...

E volta-se, com gosto, a ler da "tua biblioteca" o que as terras interiores - tão estranhas para a beira-mar são! - foram, usaram, comeram, nasceram...
Virei espreitar.
Obrigada!

E peço desculpa por deixar uma mensagem à Isamar (Alfazema...) que tinha perdido e não consigo comentar no lugar dela (a ligação cai ao comentar!): um abraço para o teu Algarve, as tuas pessoas, o teu mar ...

Joaquina S. Clestino disse...

Sim ,parabéns pelas suas narrativas e pela maneira como o faz.Sinto-me ,ao ler os seus textos mergulhar ,no já lá muito atrás da minha infância,mas sempre vivo quando vou à Idanha! Graças à Srª do Almortão que vou muitas vezes!No entanto mais grata lhe estou por dar a conhecer a riqueza do nosso interior, do nosso concelho, como ele tem coisas boas ,apesar de longe do mar e como nele há gente capaz de produzir estes textos.BEM-HAJA...