
CIRCO ELEITORAL (parte 2)
Eleições? Votar, servia para quê?
A pouca informação e a falta de educação política, trazidas teimosamente pela arreata até Toulões, aliadas ao facto de poucos saberem ler e escrever, levava a que o boletim de voto fosse, sobretudo para os que mais anos amargaram, um verdadeiro quebra-cabeças. Distinguir, no papel, o partido no qual votar, seguindo a indicação orientada pela opinião de um vizinho ou familiar, só pelo distintivo: punho fechado, foice e martelo, setas para o céu, etc., uma vez que a letras das siglas não passavam de hieróglifos tão complexos de decifrar como os escritos deixados pela “diabólca”, gatafunhados no gorrão de sentinela à água da Fonte da Serra. E segurar firmemente uma caneta para cruzar dois riscos dentro do quadradinho escolhido, era bem mais difícil que pegar numa sachola para abrir uma regadeira num leirão de milho.
Nas eleições seguintes, em 1976, o povo foi chamado pela segunda vez a expressar-se livremente através do voto, para escolha dos mais altos signatários da Nação. Este ano de maturação em democracia trouxe mudanças significativas ao quotidiano de Toulões.
A reforma agrária ramificara até ao concelho de Idanha. Impulsionada pelo ideal revolucionário de “a terra a quem a trabalha”, surgida no Alentejo a pretexto de dar cultivo a terras onde só medravam silvas e carapetos, culminou, sob o mesmo pretexto, na ocupação de algumas propriedades do concelho. A Granja do “Marroques”, 1600 ha de terra a perder de vista, ao dar origem à Cooperativa da Granja de S. Pedro, saciando apetites oportunistas, foi uma delas. Pertencente geograficamente ao termo de Alcafozes, era, no entanto, de gente de Toulões a grande força do trabalho que fazia bulir a Granja.
Com a constituição da Cooperativa após as longas reuniões da Queijeira, alguns toulonenses saídos não alinhados com as propostas dos “cabecilhas”, apesar das vantagens em termos sociais para os trabalhadores (descontos para a “caixa”, baixa médica, férias pagas), abdicaram das regalias proporcionadas pela cooperativa e preferiram fazer-se à vida por outras paragens.
Em busca de melhores salários, aproveitaram a estratégia engendrada pelos “ricos”, proprietários e rendeiros de coutos das imediações, um subtil esquema de contra-força, para impedir o alastrar de veleidades políticas inconformes com os seus interesses. Temendo a ocupação selvagem da sua terra, aliciar a escassa mão-de-obra disponível, dado o êxodo migratório verificado uns anos antes e granjear a fidelidade de alguns jornaleiros, era uma forma de garantir a defesa da propriedade.
Os que ficaram, alguns menos capacitados e com dificuldades em conseguir trabalho fora dali, (a cooperativa facultava emprego social) arrolados por um grupo bem definido ideologicamente, ganharam simpatia pela doutrina esquerdista ao ponto de um ou outro ser ter tornado interventivo.
Entre os que saíram e os que ficaram, com pontos de vista diferentes, as opiniões políticas divergentes eram por vezes exacerbadas ao balcão da taberna, com desentendimentos resolvidos de forma tão violenta como caricata.
Com as eleições que se avizinhavam, e a contrastar com a primeira campanha eleitoral, passada ao largo como raposa a rondar vinha vindimada, a campanha passou desta vez com ares de pregação a tentar fazer valer a máxima “um voto é um voto, por um se ganha, por um se perde”.
Ainda o acesso que trazia os visitantes a Toulões, os levava de volta pelo mesmo caminho, as caravanas chegavam aqui com os mesmos apetrechos chamativos que a tropa-fandanga dos saltimbancos.
Era o circo eleitoral. Davam meia volta pelo povo, abrandavam no adro, a fazer mais lavarinto que a canzoada no dia de vacina, indo, invariavelmente, montar arraiais no “Salão” para completar o espectáculo.
Assim aconteceu com o CDS a abrir as hostes. À altura conduzido pela batuta de Freitas do Amaral, prometia bater o pé ao PS e ao PPD, já hegemonicamente instalados, e, sobretudo, desancar no PCP. Chegou aqui com a cavalaria a galope, tendo-se apeado à porta do Salão para o esclarecimento da praxe.
Encostado ao balcão do bufete, com ligação para o interior do salão onde decorria o “comício”, “B.”, ainda com a farda com que limpou a cama ao vivo, cheia de esterco, pouco se importou com o fato domingueiro de quem dava ouvidos à reacção. Nunca gostou e impostrices. Para entrar na taberna e beber um copo, haveria necessidade de mudar de roupa? Para mais, vistas as circunstâncias, sempre era uma oportunidade para dar um sinal de hostilidade para com o CDS, manifestamente contra as cooperativas.
O palestrante, bom orador, propagandista quanto baste, tentava umas incursões pelo sentimento empedernido do povo.
“B.”, de pé atrás com as intenções do orador, filosofa para os que o rodeiam:
– “Há que desconfier mas é dos bem falantes. São eles que nos enfiam a garruça”.
E já pingado, continuava a desfolhar uma réstia de impropérios contra o CDS(ML), figurativo usado por um elemento do PC de Castelo Branco, visita assídua da Cooperativa e ao qual achava graça..
– “ML? Marxista e Leninista, o CDS?” - admirava-se com a tirada o ti Pintalgado, que sabia mais que a justiça velha e para quem uma enciclopédia não era unicamente o ciclomotor a pedais com que designava as “mobilettes” trazidas pelos “franceses”.
– “Marxista e Leninista, não. Mê e Lê é Monopolista e Latifundiário.” - E lança um grito de guerra: – "Viva o PCP!"
“M.Z.”, por defeito com postura cronicamente do contra, instruído pelo patrão e também por um copo de três a mais para ser um aguerrido elemento anti esquerda, pegou no argumento de “B” para armar algazarra. Antigos cúmplices nas lides do contrabando, andavam agora desavindos por causa de políticas divisionistas. Acendeu-se a discussão, com mutuas promessas de morte pelo meio, que só amainou mercê da forte intervenção da assistência.
O que veio depois dá que contar.
Na manhã seguinte, por obra e graça de uma inspiração nocturna, surgiram escritas na parede caleada da casa do Beato, “uma casa sem dono”, umas enormes e esborratadas letras num esmaltado azul-marinho.
“PCP”.
Talvez devesse ser vermelho, mas era certamente a cor que estava mesmo ali á mão de semear. Pela rigidez gestual com que pareciam ter sido desenhadas, com a tinta escorrida e a esbeiçar sobre os caixilhos e numa vidraça da janela, adivinhava-se no autor deste garrafal despropósito mais anos de ligação ao analfabetismo que à ideologia graficamente explanada sobre parede alheia.
Foi uma intriga que ralou as mentes passantes logo pela manhã a caminho da missa. Por desconhecimento do alfabeto, poucos sabiam interpretar o significado.
Descodificado o enigma, nas cogitações do povo só podia ser alguém ligado à cooperativa da Granja, único sitio das redondezas onde o partido tinha ramo verde para pisar e, mesmo assim, consta que passado algum tempo lhe era refreado o impeto. O medo do papão de terrenos trazia o povo retesado.
A notícia do sucedido trouxe à rua a visita de uma romaria de curiosos.
Admiração geral. Falatório.
Mas quem teria sido o alma-do-diabo, o sem careio, que pôs uma bostada destas?
“M.Z.”, inteirado do sucedido, cegou ao encarar com aquela provocação.
Presumindo ser “B” o autor da façanha, e etilicamente já composto, foi a casa buscar a caçadeira e montou-lhe a guarda à porta. Possuído de raiva desatou um chorrilho de injúrias e impropérios.
O aparato montado deixou a vizinhança de plantão dentro de casa a vigiar pelas frestas. Não vendo vivalma acercou-se da entrada do palheiro ao lado e vociferou:
– "Abriu a caça ao coelho." – e dispara um tiro para o ar.
O estrondo provocado pelo estoiro da pólvora despoletou dentro do palheiro um alvoroço animalesco. A porta, entraberta, rangeu ligeiramente .
– "Estás aí drento, mê comunista de merda? Aparece que te hei-de arrebentar c’a fessura e c’as intranhas."
Assomou-se para o interior escuro do palheiro, empurrou a porta e, de espingarda em riste, entrou de rompante. Conforme entrou assim foi posto na rua, caindo de borco na soleira, impulsionado por uma parelha de coices à queima-roupa. Prostrado, gemia com uma mão no baço e outra nas costelas.
Um “matcho” anónimo e politicamente analfabeto acabara de lhe dar lição de democracia.