Construção de um empreendimento industrial
Foto de autor deconhecido
Passadas as celebrações do 25 de Abril, trinta e três anos depois, os cravos da Liberdade parecem definhar a cada ano que passa.
E não é de admirar! Basta ver o respeito que algumas entidades públicas guardam pelos valores de Abril. Como exemplo, a pontaria da presidência da CML, na escolha da data de inauguração da polémica obra do túnel do Marquês, talvez perspectivando lá poder enterrar os poucos cravos que ainda mantêm algum viço, ou então esconder os rabos de palha de algum manjerico sob suspeição, enquanto o desfile comemorativo da efeméride lhe passa por cima.
Bom, mas vamos ao início!
Em 1974, para a maior parte da gente das aldeias do interior raiano, o anúncio do fim da ditadura teve o mesmo impacto que tivera o 5 de Outubro de 1910 com a queda da Monarquia e a implantação da República ou, mais recentemente, o primeiro passo em solo lunar por parte do americano Neil Armstrong, ou seja: impacto nulo a que nem se pode chamar indiferença nem incredulidade.
A mente da população, mantida na ignorância, era impedida de alargar horizontes para lá das fronteiras do seu termo e compreender o 25 de Abril, foi uma árdua tarefa que chegou a conta gotas.
Ninguém tinha consciência política e o único governo que conheciam era apenas o seu próprio governo. Aquele com que geriam o ganha-pão para o sustento da casa e da família.
Dos governantes que conduziam os destinos da nação apenas conheciam os que zelozamente pairavam pendurados sobre o quadro negro da escola, representados pela nova Santíssima Trindade: Jesus Cristo redentor, ministro de Deus, crucificado para salvar o Mundo, auxiliado na sua laboriosa gesta pelo chefe do governo ao momento, um homem austero, que adorava seroar em família, permanecia, tal como o seu antecessor, orgulhosamente só, pendurado à direita de Cristo Pai.
Do outro lado, estava dependurado o chefe do estado. Enfaixado, olhando fixamente para a parede em frente com carranca de poucos amigos, fazia do uso da tesoura o seu modo de evitar a inépcia.
O país desandava a pão e vinho e cantava-se o fado da "sardinha para três", que contava a história da miséria, num tempo em que o fraco sustento dependia de uma economia enfezada, proporcionada por uma decadente agricultura tradicional, caracterizada pelo uso de velhos métodos que não acompanharam a evolução surgida na Europa depois da Segunda Guerra, só atenuada após o aparecimento da metalurgia do Tramagal.
Para escapar deste quadro dantesco, muita gente nova foi levada a procurar outro modo de vida em terras do litoral, principalmente em Lisboa.
Chegada a idade para trabalhar, aí com 11 ou 12 anos, muitos garotos eram despachados "a escorregar, tábua abaixo" (como dizem alguns alfacinhas invejosos do que o seu suor produziu) até à capital, para servir de mocinhos de recados e de caixeiros em lojas e mercearias.
Os mais velhos, já com a tropa feita, candidatavam-se a incorporar os contingentes das forças de segurança, os sapadores bombeiros, que lhes garantiam um emprego com condições dignas para poderem ajeitar a vidinha.
Para os que não conseguiam ou para aqueles a quem o trabalho não correspondia às expectativas, sobrava a construção civil. Trabalho mais duro, é certo, mas não menos honrado e com um horário que nada tinha a ver com o sol-a-sol das jeiras agrícolas.
Mas alguns Toulonenses que tentaram a aventura lisboeta, sentiram-se atraídos pela envergadura das chaminés fumegantes que rasgavam o horizonte sobre as águas do Tejo, avistadas do outro lado do rio mesmo em frente ao Terreiro do Paço.
Era o sinal da industrialização que transformara o Barreiro, outrora terra de fragateiros, num dos maiores pólos de desenvolvimento do país e que dava pelo nome de Companhia União Fabril.
A CUF clamava por braços de trabalho e foram estes homens de mãos calejadas que formaram a grande mole operária, que de trabalhadores rurais rapidamente passaram a operários fabris de uma indústria que florescia num desabrochar primaveril, prontos a limpar da memória o grito justo de revolta contra o estampido do chicote dos feitores.
Chegados à grande urbe, esta deu-lhes a conhecer uma nova realidade: a luta operária na defesa de melhores condições de trabalho, coisa que na ruralidade raiana, nunca entrara em sonho nenhum.
Alguns mais deslumbrados, depressa se viram enredados na entusiasmante malha ideológico-partidária e no consequente trabalho de campo de fazer chegar a todos os que partilhavam dos mesmos ideais a informação que uniformizava o pensamento e que tornou a CUF no principal bastião da luta proletária.
Vieram as reuniões secretas às tantas da noite no Pinhal do Forno, para os lados de Alhos-Vedros, ou no Pinhal do Castanho nos arrabaldes da Baixa da Banheira, onde ouviam as palestras dos "cabecilhas", alguns com experiências trazidas de outras reuniões clandestinas, organizadas nos montados do Couço e outros lugares do Alentejo.
Ali se vinham ouvir notícias do mundo operário que ajudavam a delinear estratégias de combate laboral.
O ti Sebastião, funcionário da CUF quase desde a sua fundação, Toulonense que nunca se negou a dar a mão a um conterrâneo, fora sufragado pelo destino para tomar conta da telefonia. Colocava um o copo com água sobre o aparelho para afogar as frequências denunciadoras antes que chegassem aos detectores da Legião, que formava acérrimas milícias anticomunistas.
E foi numa noite de 1 de Maio que, através da onda curta da Rádio Moscovo, chegou solenemente pela voz de um ex-colega do ti Sebastião, Francisco Ferreira (Chico da Cuf), exilado na URSS, a mensagem, palavra de ordem, proclamada cerca de cem anos antes por Karl Marx:
PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!
13 comentários:
Mais um texto de excelência, do fundo da nossa memória colectiva. Boa semana.
Um texto de grande primado, sempre na linha deste blogue que tanto aprecio e gosto de visitar, e que aqui recorda pedaços vivos da História bem próxima de nós. Pela excelência do trabalho, gostei logicamente. Um abraço e até breve.
Sempre que aqui venho ja sei que tem para nos um texto de excelencia.
Uma excelente maneira de comemorar o "Dia do Trabalhador"!!!
Um abraco serrano d'Algodres.
Um texto de um OSCARINIZADO na Categoria-Prosa.
Oscarino que não tenho o prazer de aqui ver, mas não é por isso que lhe irá ser retirado.
Ao ler, lembrei-me de tantas dessas coisas que são contadas e dei por mim aperguntar se, passados 33 anos, a realidade de tantas terras do país será tão diferente da que aqui é passada em revista.
Não há agora reuniões clandestinas, nem sequer há reuniões...nem um Chico da Cuf existe.
E os proletários vergam-se hije não ao peso da denuncia e do degredo, mas do medo de ficar sem ganha-pão.
Por isto, digo:
Proletários de todo o mundo, Uni-vos!
Um abraço.
Mais um excelente texto. Também na minha família houve quem viesse trabalhar para a cidade como forma de fugir À miséria e à fome. O meu avô paterno era galego e veio para Portugal à procura de melhor vida (foi dos que deu corpo à frase Trabalhar que nem um Galego)e o mu pai lá veio da aldeia perto de Penela para Coimbra, servir para o estabelecimento de uns familiares, mal fez a 4ª classe.
Um abraço.
Mais um excelente texto. Também na minha família houve quem viesse trabalhar para a cidade como forma de fugir À miséria e à fome. O meu avô paterno era galego e veio para Portugal à procura de melhor vida (foi dos que deu corpo à frase Trabalhar que nem um Galego)e o mu pai lá veio da aldeia perto de Penela para Coimbra, servir para o estabelecimento de uns familiares, mal fez a 4ª classe.
Um abraço.
Caro Chanesco
Ao trabalhador o que é do trabalhador! mas infelizmente, como muito bem o ilustra, os cravos têm definhado. Valeria a pena uma reflexão sobre todas estas comemorações, o que elas nos dizem na actualidade.
Mais uma vez, parabéns ao seu fabuloso arquivo de memórias.
um abraço raiano
Para começar, uma nota de graça: lá em casa, a propósito das três imagens que encimavam o quadro da escola dizia-se: "É Cristo e os dois ladrões! Mas caluda, não repitas isto lá fora!" O caluda, já se vê, era para mim, a benjamim da família.
As zonas raianas têm histórias semelhantes e no seu texto, à excepção do lugar de destino, encontro a minha aldeia. Os meus amigos de infância e, antes deles, os seus pais e irmãos mais velhos, saíram para França e foi de França que chegaram as notícias do sindicalismo e a novidade de que havia pensamentos diferentes daqueles que líamos no livro único.
Os emigrantes, mais do que desfear a paidsagem, foram veículo de inovação, bem-hajam eles!
E sim, a expressão com que Marx e Engels encerram o "Manifesto Comunista" continua, tragicamente, actual.
Um abraço, Chanesco
Sempre uma perspectiva de ternura! Gosto da forma como nos falas da revolução, do caminho percorrido nas nossas aldeias e cidades. Contigo, se fazem distâncias curtas entre mentalidades diferentes. Encaixa o puzzle das nossas vidas. Um texto excelente, contido e no entanto, dum vigor existencial que nos abana. Crê que em 58, nas cidades, as "aldeias mentais" também existiam, tal como as descreves aí. Fechadas, no seu ganha pão. Sem dúvida que partilho da opinião de que é preciso uma vanguarda de gente esclarecida, uma cultura do Bem e Bom, para que realmente as pessoas percebam "aquilo a que têm direito"! Abraço
Meu caro amigo Chanesco
Fiquei siderado depois de ler de um fôlego este seu texto.
Uma maravilha como se consegue imprimir tanta vida às palavras. É certo que o tema cativa. Quem viveu todo este período também com a emoção das cenas descritas não pode ficar indiferente à descrição que consegue transmitir-nos. Pena ser cada vez mais difícil transmitir estas emoções aos mais jovens.
Não se pode deixar esquecer esta fase da vida recente dos portugueses.
Um grande abraço, caro amigo
António Nunes
Passei e deixo um abraço.
Caro Chanesco, depois de ler este texto, sobre uma realidade que à data ignorava... andava por outras bandas, para lá doa mares...
dei comigo a reflectir em coisas que jamais me tinham passado pela cabeça.
Pois é.
Em boa hora o fiz, obrigada.
Um abraço
é um texto um bocadinho grande mas valeu a pena pela qualidade de informação que contem.
abraço da leonoreta
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